Por Anthony A Hoekema
Conforme vimos, o aspecto central do
ensino neotestamentário acerca do futuro do homem é a volta de Cristo e os
eventos que acompanharão essa volta: a ressurreição, o juízo final e a criação
da nova terra. Mas antes de avançarmos para considerar esses assuntos, temos de
dar alguma atenção ao que normalmente é denominado de “o estado intermediário”
- isto é, o estado do morto entre a morte e a ressurreição.
Desde o tempo de Agostinho 1,
os teólogos cristãos pensavam que, entre a morte e a ressurreição, as almas dos
homens desfrutavam do descanso ou sofriam aflições enquanto esperavam ou pela
complementação de sua salvação, ou pela consumação de sua condenação. Na Idade
Média, esta posição continuou a ser ensinada 2, e foi desenvolvida a
doutrina do Purgatório. Os Reformadores rejeitaram a doutrina do Purgatório,
mas continuaram a defender um estado intermediário, embora Calvino, mais do que
Lutero, tendia mais a considerar esse estado como de uma existência consciente 3.
Em sua obra Psycopannychia, uma resposta aos Anabatistas de seu tempo,
que ensinavam que as almas simplesmente dormiam entre a morte e a ressurreição,
Calvino ensinou que, para os crentes, o estado intermediário é tanto de bênçãos
como de expectação - por causa disso a bênção é provisória e incompleta4.
Desde aquele tempo, a doutrina do estado intermediário tem sido ensinada pelos
teólogos da Reforma 5, e se reflete nas Confissões da Reforma 6.
Entretanto, a doutrina do estado
intermediário tem sido recentemente sujeita a uma crítica severa. G.C.
Berkouwer retrata o ponto de vista de alguns destes críticos em seu recente
livro sobre escatologia 7. G.Van Der Leeuw (1890-1950), por exemplo,
sustenta que após a morte somente existe uma perspectiva escatológia para os
crentes: a ressurreição do corpo. Ele rejeita a idéia de que exista “algo” do
homem que continue após a morte e sobre o que Deus construiria uma nova
criatura 8. De acordo com as Escrituras, assim insiste ele, o homem
morre totalmente, com corpo e alma; quando o homem, mesmo assim, recebe uma
nova vida na ressurreição, isto é um feito maravilhoso de Deus, e não algo que
jorre naturalmente da existência atual do homem 9. Por causa disso,
falar de “continuidade” entre nossa vida atual e a vida da ressurreição leva ao
engano 10. Deus não cria nosso corpo ressurrecto a partir de alguma
coisa - por exemplo, nosso Espírito, ou nossa personalidade - mas ele cria uma
nova vida do nada, de nossa vida aniquilada e destruída 11.
Outro crítico moderno da doutrina do
estado intermediário é Paul Althaus, um teólogo luterano (1888-1966). Esta
doutrina, sustenta ele, deve ser rejeitada uma vez que pressupõe a existência
continuada e independente de uma alma incorpórea 12, e por este
motivo é mesclada com Platonismo 13. Althaus apresenta várias
objeções à doutrina do estado intermediário. Esta doutrina não faz jus à
seriedade da morte, uma vez que a alma parece passar incólume através da morte 14. Por sustentar que, sem o corpo o homem pode
ser totalmente abençoado e completamente feliz, esta doutrina nega a
importância do corpo 15. A doutrina tira o significado da
ressurreição: quanto mais aumentarmos as bênçãos do indivíduo após a morte,
mais diminuiremos a importância do último dia 16. Se, de acordo com
esta doutrina, os crentes após a morte já estão abençoados e o ímpio já está no
inferno, por que ainda é necessário o dia do juízo? 17. A doutrina
do estado intermediário é completamente individualista; ela envolve mais um
tipo privado de bênção do que comunhão com os outros, e ignora a redenção do
cosmos, a vinda do Reino, e a perfeição da igreja 18. Em suma,
conclui Althaus, esta doutrina separa o que deve estar junto: corpo e alma, o
individual e o comunitário, felicidade e a glória final, o destino de
indivíduos e o destino do mundo 19.
Em resposta a estas objeções, deve ser
admitido que a Bíblia fala muito pouco acerca do estado intermediário e que
aquilo que ela diz acerca dele é contingente à sua mensagem escatológica
principal sobre o futuro do homem, que diz respeito à ressurreição do corpo.
Temos de concordar com Berkouwer que aquilo que o Novo Testamento nos fala
acerca do estado intermediário não passa de um sussurro 20. Temos
também de concordar que em lugar nenhum o Novo Testamento nos fornece uma
descrição antropológica ou exposição teórica do estado intermediário21.
Entretanto, permanece o fato de que há evidência suficiente para nos capacitar
a afirmar que, na morte, o homem não é aniquilado e o crente não é separado de
Cristo. Veremos mais adiante qual é esta evidência.
Neste ponto, devemos fazer uma
observação sobre a terminologia. Geralmente, é dito por Cristãos que a “alma”
do homem continua a existir após o corpo ter morrido. Este tipo de linguagem é freqüentemente
criticado como revelando um modo grego ou platônico de pensar. Será que isso é
necessariamente assim?
Deve ser admitido que certamente é
possível falar da “alma” de modo platônico. No capítulo anterior foi
apresentada esta visão platônica da alma, bem como a divergência entre essa
visão e a concepção cristã do homem.
Mas, o fato de que os gregos usaram o
termo alma de modo não bíblico não implica, necessariamente, que todo
uso da palavra alma, para indicar a existência continuada do homem após
a morte, seja errado. O próprio Novo Testamento utiliza ocasionalmente deste
modo a palavra grega para a alma, psyche, Arndt e Gingrich, em seu Greek-English
Lexicon of the New Testament (Léxico Grego-Inglês do Novo Testamento),
sugerem que psyche, no Novo Testamento, pode significar vida, alma como o
centro da vida interior do homem, alma como o centro da vida que transcende
terra, aquela que possui vida, a criatura vivente, alma como aquela que deixa o
Reino da terra e da morte e continua a viver no Hades 22.
Existem, pelo menos, três exemplos
claros do Novo Testamento onde a palavra psyche é usada para designar
aquele aspecto do homem que continua a existir após a morte. O primeiro deles
encontra-se em Mateus (10.28): “Não temais os que matam o corpo e não podem
matar a alma (psyche); temei antes aquele que pode fazer perecer no
inferno tanto a alma como o corpo”. O que Jesus diz é o seguinte: Existe algo
seu que aqueles que o mataram não podem tocar. Este algo tem de ser um aspecto
do homem que continua a existir após a morte do corpo. Dois exemplos mais deste
uso da palavra são encontrados no livro do Apocalipse: “Quando ele abriu o
quinto selo, vi debaixo do altar as almas (psychas) daqueles que tinham
sido mortos por causa da palavra de Deus e por causa do testemunho que
sustentavam”(6.9); “Vi ainda as almas (psychas) dos decapitados por
causa do testemunho de Jesus, bem como por causa da palavra de Deus”(20.4). em
nenhuma destas duas passagens a palavra almas pode se referir a pessoas que
ainda estejam vivendo na terra. A referência é claramente a mártires
assassinados; a palavra almas é usada para descrever aquele aspecto
desses mártires que ainda existe após seus corpos trem sido cruelmente abatidos
23.
Concluímos, portanto, que não é
ilegítimos nem antibíblico usar a palavra alma para descrever o aspecto
do homem que continua a existir após a morte. Devemos acrescentar que, às
vezes, o Novo Testamento usa a palavra Espírito (pneuma) para descrever
este aspecto do homem: por exemplo, em Lucas (23.46), Atos (7.59) e Hebreus
(12.23) 24.
As Escrituras ensinam claramente que o
homem é uma unidade, e que “corpo e alma” (Mt 10.28) ou “corpo e espírito” (1
Co 7.34; Tg 2.26) são inseparáveis 25. O homem só é completo nesta
espécie de unidade psicossomática. Porém, a morte faz surgir uma separação
temporária entre o corpo e a alma. Uma vez que o Novo Testamento,
ocasionalmente, realmente fala das “almas” ou dos “espíritos” dos homens como
ainda existindo durante o tempo entre a morte e a ressurreição, nós também
podemos fazê-lo, desde que lembremos que este estado de existência é
provisório, temporário e incompleto. Uma vez que o homem não é totalmente homem
sem corpo, a esperança escatológica central das Escrituras, em relação ao
homem, não é a simples existência continuada da “alma” (conforme o pensamento
grego) mas é a ressurreição do corpo.
Passaremos agora a investigar o que a
Bíblia ensina acerca da condição do homem entre a morte e a ressurreição.
Comecemos pelo Antigo Testamento. De acordo com o Antigo Testamento, a
existência humana não finda com a morte; após a morte, o homem continua a
existir no Reino dos mortos, geralmente denominado Sheol. George Eldon
Ladd sugere que o “Sheol é a maneira veterotestamentária de afirmar que a morte
não acaba com a existência humana” 26.
Na versão King James a palavra
hebraica Sheol é traduzida diversamente como sepultura
(31 vezes), inferno (31 vezes) ou cova (31 vezes). Porém, tanto
na Versão American Standard como na Versão Revised Standard, Sheol
não foi traduzida.
Ao passo que admite que a palavra nem
sempre significa a mesma coisa, Louis Berkhof sugere no sentido tríplice para Sheol:
o estado de morte, sepultura ou inferno 27. É bem confirmado que Sheol
possa significar tanto o estado de morte como a sepultura; mas é duvidoso que
possa significar inferno.
(1) Geralmente, Sheol significa
reino dos mortos que deve ser entendido figuradamente como designando o estado
de morte. Freqüentemente Sheol é simplesmente usado para indicar o ato
de morrer: “Chorando, descerei [Jacó] a meu filho até à sepultura (Sheol)”
(Gn 37.35); “se lhe [Benjamim] sucede algum desastre no caminho por onde
fordes, fareis descer minhas cãs com tristeza ao Sheol”(Gn 42.38). Em 1 Samuel
2.6, na verdade, fazer descer ao Sheol é equivalente a levar alguém ao
estado de morte: “O Senhor é o que tira a vida, e dá; faz descer ao Sheol e faz
subir”.
As diversas figuras aplicadas ao Sheol
podem todas ser entendidas como se referindo ao Reino dos mortos: é dito do
Sheol que ele tem portas (Jó 17.16), que é um lugar escuro e triste (Jó
17.13), e que é um monstro com apetite insaciável (Pv 27.20; 30.15,16; Is 5.14;
Hc 2.5). Quando consideramos o Sheol desde modo, temos de lembrar que
tanto o piedoso como o ímpio descem ao Sheol na morte, uma vez que ambos entram
no reino dos mortos.
(2) Às vezes, Sheol pode ser
traduzido como sepulcro. Exemplo caro está no Salmo 141.7: “ainda que
sejam espalhados os meus ossos à boca do Sheol se lavra e sulca a terra”.
Entretanto, este não parece ser um significado comum do termo; e especialmente
não o é porque existe um termo hebraico para sepultura, gebher. Muitas
passagens nas quais Sheol poderia ser traduzido por sepultura,
têm também o sentido claro se traduzirmos Sheol por reino dos mortos.
Tanto Louis Berkhof como William Shedd
sugerem que, às vezes Sheol pode significar inferno ou lugar
de punição para os ímpios 28.
Mas as passagens citadas para sustentar esta interpretação não são
convincentes. Um dos textos assim citados é o Salmo 9.15: “Os perversos serão
lançados no Sheol, e todas as nações que se esquecem de Deus”. Mas não há
indicação no texto de que uma punição está envolvida. Fica difícil crer que o
Salmista esteja predizendo aqui a punição eterna de cada membro individual
destas nações iníquas (goyim). A passagem, porém, tem sentido bem claro
se entendermos Sheol no significado comum, referindo-se ao reino da
morte. O Salmista estará então dizendo que as nações ímpias, embora agora
se orgulhem de seu poder, serão extirpadas pela morte.
Outra passagem apresentada por Berkhof
é a do Salmo 55.15: “A morte os assalte, e vivos desçam ao Sheol!” À luz do
princípio do paralelismo que, geralmente, caracteriza a poesia hebraica,
parecia que a segunda linha está apenas repetindo o pensamento da primeira linha:
a morte (ou desolação, na leitura marginal) virá sobre estes meus inimigos.
Descer vivo ao Sheol, então, significaria morte súbita, mas não
implicaria, necessariamente, punição eterna.
Outro texto ainda citado por Berkhof,
relacionado com isto, é o de Provérbios 15.24: “Para o entendido há o caminho
da vida que o leva para cima, a fim de evitar o Sheol em baixo”. Mas aqui
novamente se encontra o contraste óbvio entre vida e morte, a última
representada pela palavra Sheol.
Não foi definitivamente comprovado,
portanto, que Sheol possa designar o lugar de punição eterna. Mas é
verdade que já no Antigo Testamento começa a aparecer a convicção de que o
destino do ímpio e o destino do piedoso, após a morte, não são o mesmo. Esta
convicção é expressa primeiramente na crença de que, embora o ímpio permanecerá
sob o poder do Sheol, o piedoso finalmente será liberto desse poder.
Por exemplo, no Salmo 49.14, lemos que
os ímpios, “como ovelhas, são postos no Sheol; a morte será seu pastor” (ASV).
Estas palavras sugerem a idéia de que a morte deverá guardá-los e nunca
deixá-los ir. Os justos, porém, deverão ser redimidos do poder da morte: “Mas
Deus remirá a minha alma do poder (literalmente, da mão) do Sheol; pois ele me
tomará para si” (v.15). Aqui é revelada uma diferença acentuada entre o destino
dos ímpios e o destino dos justos após a morte. É dito que o justo será
redimido do poder da morte - uma declaração que, pelo menos, sugere, sem o
afirmar claramente, a promessa da ressurreição dos mortos 29.
Uma passagem de importância semelhante
é a do Salmo 16.10: “Pois não deixarás a minha alma para o Sheol, nem
suportarás que o teu santo veja corrupção” (ASV). O significado parece ser: tu,
Senhor, não abandonarás minha alma (ou a mim) ao Reino dos mortos permanentemente,
e tu não permitirás que eu veja corrupção. O Apóstolo Pedro cita esta passagem
em seu sermão de Pentecostes (At 2.27,31), e a aplica à ressurreição de Cristo,
afirmando que através destas palavras Davi estava profetizando esta
ressurreição. A pergunta é: Que significou esta passagem para Davi, quando ele
a escreveu? Poderia ter significado simplesmente sua confiança de que, embora
ele estivesse em perigo mortal naquela época, Deus não o deixaria morrer. Em
Atos (2.30,31), entretanto, Pedro diz de Davi: “Sendo, pois, profeta, e sabendo
que Deus lhe havia jurado que um dos seus descendentes se assentaria no seu
trono; prevendo isso, referiu-se à ressurreição de Cristo, que nem foi deixado
no Hades [a palavra neotestamentária equivalente a Sheol], nem o
seu corpo experimentou corrupção”. Se as palavras do Salmo 16 podem realmente
ser interpretadas como uma predição da ressurreição de Cristo, elas podem ter
também significado para Davi a esperança da sua própria ressurreição. À luz do
uso que Pedro fez da passagem, certamente não podemos excluir a segunda
interpretação 30.
As duas passagens que acabamos de citar
indicam que a esperança da libertação do Sheol, para o povo de Deus, já
estava presente na época do Antigo Testamento. Podemos observar mais algumas
passagens veterotestamentárias que indicam que o destino dos justos, após a
morte, é melhor que o destino dos ímpios. A simples declaração acerca de Enoque
já sugere esta idéia: “Enoque andou com Deus, e já não era, porque Deus o tomou
para si” (Gn 5.24). As palavras de Balaão, em Números (23.10) também implicam
que há uma diferença entre o destino dos justos e o destino dos ímpios após a
morte: “Que eu morra a morte dos justos, e o meu fim seja como o dele”.
Um contraste semelhante está escrito em
duas outras passagens dos Salmos. O Salmo 17.15 diz: “Eu, porém, na justiça
contemplarei a tua face; quando acordar eu me satisfarei com a tua semelhança”.
Embora o primeiro sentido destas palavras provavelmente seja a comunhão com de
Deus nesta vida, certamente não é inseguro ver nelas uma referência à vida após
a morte. Em contraste com o destino dos ímpios, ao qual ele se referiu nos
versos precedentes, o Salmista espera contemplar a forma ou semelhança temunah
de Deus ao acordar do sono da morte31.
O Salmo 73.24 diz: “tu me guias com o
teu conselho, e depois me recebes na glória (ou honra)”. A palavra kabhodh,
aqui traduzida por glória ou honra não vem precedida de preposição, e
pode talvez ser considerada como um acusativo de modo; ela é traduzida diversamente
como: “a glória, para “a glória”, “em glória” ou “com glória”. À luz do Salmo
inteiro, que contrasta o destino dos ímpios com o dos justos, podemos dizer que
aqui a fé de Asafe contempla o além-túmulo. Asafe está confiante de que, embora
agora os ímpios pareçam prosperar, eles perecerão ao final (vs. 19,27), mas que
ele, embora agora sofrendo muitos castigos (v.14), será recebido na glória após
esta vida. Fica evidente que esta é uma interpretação plausível da passagem a
partir do verso 26: “Ainda que a minha carne e o meu coração desfalecem, Deus é
a fortaleza do meu coração e a minha herança para sempre” 32.
Que ensina o Novo Testamento acerca do
assim chamado estado intermediário? De início, temos de afirmar, como já foi
mencionado, que a Bíblia não fala muito acerca deste estado, deixando várias
questões sem resposta. Porém, os ensinos do Novo Testamento, neste assunto, não
contradizem porém antes complementam e expandem os do Antigo Testamento.
O Novo Testamento, assim como o antigo,
ensina que o homem não é aniquilado na morte mas continua a existir, seja no Hades
ou em um lugar de felicidade às vezes denominado Paraíso ou seio de Abraão. Hades
é a tradução comum da Sptuaginta para Sheol. Porém, o significado de
Hades, no Novo Testamento, não é exatamente o mesmo de Sheol no
Antigo Testamento. No Antigo Testamento, como vimos, Sheol indicava o
reino dos mortos ou, ocasionalmente, a sepultura. Durante o período
interbíblico, entretanto, o conceito de Sheol sofreu certas mudanças. Na
literatura rabínica deste período, bem como em alguns escritos apocalípticos
começou a surgir o conceito de que há uma separação espacial no mundo dos
mortos entre o justo e o ímpio; em alguns escritos, a palavra Hades
começou a ser usada exclusivamente para o lugar de punição das lamas ímpias no
mundo dos mortos 33. Em certa extensão, o uso neotestamentário da
palavra Hades reflete esta
evolução.
Na maioria das vezes, a palavra Hades,
no Novo Testamento, designa o reino dos mortos. Ela é usada nesse
sentido em Atos (2.27.31), no sermão de Pentecostes de Pedro: “porque não
deixarás a minha alma no Hades, nem permitirás que o teu Santo veja
corrupção... [Cristo] que nem foi deixado no Hades nem o seu corpo
experimentou corrupção”. Nesta passagem, Hades é a palavra grega equivalente
a Sheol no Salmo 16.10, e indica simplesmente o reino dos mortos.
Pedro vê essas palavras cumpridas na ressurreição de Cristo: Cristo não foi
abandonado no reino dos mortos, nem sua carne experimentou corrupção.
Hades é usado várias vezes no livro do Apocalipse; também aqui significa o Reino
dos mortos. Em 1.18, Hades é retratado como uma prisão com portas:
“[Cristo] tenho as chaves da morte e do Hades”. Em 6.8, o Hades é
novamente descrito como em relação estreita com a morte: “E olhei, e eis um cavalo
amarelo e o seu cavaleiro, sendo este chamado Morte: e o Hades o estava
seguindo”. Em 20.13, o Hades é retratado como um Reino que entrega seus
mortos: “Deu o mar os mortos que nele estavam. A morte e o Hades
entregaram os mortos que neles havia. E foram julgados um por um, segundo as
suas obras”. Esta última passagem leva Joachim Jeremias, em seu artigo sobre o Hades
no Theological Dictionay of the New Testament (Dicionário Teológico do
Novo Testamento), a dizer que Hades, no Novo Testamento, tem de se
referir ao estado intermediário, uma vez que é mencionado entregando seus
mortos por ocasião da ressurreição34.
Hades também significa reino dos mortos em Mateus 11.23: “Tu, Cafarnaum,
elevar-te-ás, porventura, até o céu? Descerás até ao Hades”. Estas palavras
são um eco de Isaías (14.13 e 15), onde a palavra profética é dirigida ao rei
da Babilônia: “Tu dizias ao teu coração: Eu subirei ao céu... Contudo, serás
precipitado para o Sheol”. Estes
versos descrevem vividamente a entrada do rei no reino dos mortos. De
modo similar, Jesus está aqui dizendo para reino dos mortos. De modo
similar, Jesus está aqui dizendo para Cafarnaum que, embora em seu orgulho ela
se esteja exaltando até aos céus, descerá ao reino dos mortos (o
lugar de humilhação e abandono) porque recusou-se a se arrepender diante das
palavras de Jesus. Fica claro que esta descida ao Hades implica em
julgamento futuro a partir do verso 24: “Digo-vos, porém, que menos rigor
haverá no dia do juízo para com a terra de Sodoma, do que para contigo”.
Mateus (16.18) é outra passagem onde o Hades
designa o reino dos mortos, as palavras de Jesus a Pedro, após este ter
feito sua grande confissão: “E sobre esta rocha edificarei a minha igreja; e as
portas do Hades não prevalecerão contra ela” (ASV). A expressão “as
portas do Hades” é o equivalente grego da expressão hebraica: “as portas do Sheol”.
Esta última expressão é encontrada em Isaías (38.10), onde Ezequias, esperando
morrer logo, é descrito dizendo: “Em pleno vigor de meus dias hei de entrar nas
portas do Sheol; roubado estou do resto dos meus anos”. Uma expressão
similar, “as portas da morte”, é encontrada em Jó (38.17) e no Salmo 107.18.
Estas expressões representam o reino dos mortos como uma prisão bastante
fortificada, com portas fortes dentro das quais os mortos estão confinados. Em
Mateus (16.18), Cristo promete que sua Igreja nunca será vencida ou conquistada
pela morte, uma vez que ele próprio é o conquistador da morte. A morte nunca
poderá destruir a Igreja de Cristo. Mesmo que os membros da igreja tenham de
morrer um a um, a Igreja continuará a existir por toda a eternidade.
Existe uma passagem do Novo Testamento,
porém, onde a palavra Hades é usada não apenas como uma designação do reino
dos mortos, mas como uma descrição
do lugar de tormentos no estado intermediário: a parábola de Lázaro e o Homem
Rico, em Lucas (16.19-31). Não é dito que Lázaro tenha entrado no Hades quando
morreu, mas sim que ele foi “levado pelos anjos para o seio de Abraão” (v.22).
Entretanto, é dito sobre o homem rico após sua morte, que “no Hades, estando em
tormentos, levantou os olhos... “Aqui o Hades representa o lugar de tormento e
sofrimento após a morte, enquanto que “o
seio de Abraão” é um lugar ou condição de existência feliz (ver também v.25).
Conforme indicado acima, esta mudança no significado de Hades é paralela
a uma mudança similar em certos escritos judaicos daquela época.
Poder-se-ia objetar que isto é uma
parábola, e que não se busca em parábolas ensino doutrinário direto acerca da
condição após a morte. Embora isto seja verdadeiro, a parábola seria totalmente
sem sentido se, de fato, não houver uma diferença entre o destino do justo e o
do ímpio após a morte. O objeto da parábola gira em torno da miséria futura do
homem rico e do futuro conforte de Lázaro.
Nesta parábola, pois, Hades é o
lugar ou condição de sofrimento e punição para o ímpio. Deveria ser igualmente
observado que a parábola não retrata as condições conforme elas serão após a
ressurreição. Nos versos 27,28 o homem rico fala de seus cinco irmãos que estão
vivendo na terra - esta situação seria impossível se a ressurreição já tivesse
acontecido (cp. também v.31). Concluímos então, que tanto os sofrimentos
associados com o Hades como os confortos associados com o seio de
Abraão, conforme descrito nesta parábola, ocorrem no estado intermediário35.
Resumindo, que podemos aprender acerca
do estado intermediário, a partir do uso bíblico dos conceitos de Sheol e
Hades? Podemos observar os seguintes pontos: (1) As pessoas não saem
totalmente da existência após a morte, mas vão para um “reino dos mortos”.
(2) Os ímpios deverão permanecer neste reino dos mortos, tendo a morte
como seu pastor. O Novo Testamento adiciona o detalhe de que, após a morte, os
ímpios sofrerão tormento, ainda antes da ressurreição do corpo (Lc 16.19-31).
(3) O povo de Deus, entretanto, sabendo que Cristo não foi abandonado no reino
dos mortos, tem a firme esperança de também ser libertado do poder do Sheol.
Novamente o Novo Testamento leva esta esperança um passo adiante, ao sugerir
que, após a morte, os justos são confortados (Lc 16.25). Em cada caso,
percebemos que o Novo Testamento expande e complementa ensinos do Antigo
Testamento.
Entretanto, o que o Novo Testamento diz
acerca do Hades não esgota seu ensino sobre o estado intermediário.
Passemos agora a observar algumas passagens específicas, que lançam mais luz
sobre esta questão.
O Novo Testamento diz bem pouco acerca
da condição dos ímpios entre a morte e a ressurreição, uma vez que sua
preocupação principal é com o futuro do povo de Deus. Conforme vimos, a
parábola do homem rico e Lázaro retrata o homem rico sofrendo tormentos no Hades
após a morte. Talvez, a passagem mais clara do Novo Testamento, que trata da
condição do ímpio morto durante o estado intermediário, seja a de 2 Pedro 2.9:
“O Senhor sabe como livrar os homem justos de provações e como reservar os
injustos para o dia do juízo, enquanto continua sua punição” (NIV). Pedro vem
expondo a severidade do julgamento divino sobre os anjos que pecaram, sobre o
mundo antigo e sobre Sodoma e Gomorra. De acordo com o verso 4, Deus lança os
anjos que pecaram no inferno (no grego, Tartarys), para serem guardados
até o julgamento. No verso 9, Pedro está falando acerca dos homens injustos. A
estes, diz ele, Deus sabe como guardar ou manter sob punição até o Dia do Juízo
- literalmente, enquanto são punidos. A palavra grega utilizada aqui, kolazomenous,
é a forma de particípio passivo presente no verbo kolazo, (=punir).
O tempo presente do particípio transmite a idéia de que esta punição é contínua
(note a tradução da NIV, citada acima). As palavras eis hemeran kriseos (=até
o Dia do Juízo), nos revelam que o que é descrito aqui não é o castigo
final dos ímpios, mas uma punição que precede o dia do juízo36. Além
disso, não pode ser sustentado que a punição aqui mencionada seja administrada
somente nesta vida atual, uma vez que as palavras “até o dia do juízo” estendem
claramente a punição até aquele dia. Esta passagem, portanto, confirma o que
aprendemos na parábola do homem rico e Lázaro, e nos revela que os ímpios
sofrem punição contínua (cuja natureza não nos é mais amplamente descrita aqui)
entre a sua morte e o Dia do Juízo.
Agora, passamos a perguntar: Que ensina
o Novo Testamento acerca da condição dos crentes mortos (ou, usando a expressão
bíblica, “os mortos em Cristo”) entre a morte e a ressurreição? Há três
passagens importantes para considerarmos aqui.
A primeira delas contém as palavras de
Jesus ao ladrão arrependido. Para entendermos seu impacto, temos de observar a
petição do ladrão bem como a promessa de Jesus: “E [o ladrão arrependido]
acrescentou: Jesus, lembra-te de mim quando vieres no (variante textual, em)
teu reino”. Jesus lhe respondeu: “Em verdade te digo que hoje estarás comigo no
paraíso” (Lucas 23.42,43). Anteriormente, este ladrão tinha reprovado seu
comparsa malfeitor e expressado arrependimento por seus erros. Agora, ele se
dirige a Jesus em fé e esperança. Como alguém, provavelmente criado na fé
judaica, o ladrão creu num Messias que algum dia, talvez no fim do mundo,
estabeleceria um reino glorioso. Estando agora convencido de que Jesus era esse
Messias, dirigiu-se a ele e pede: “lembra-te de mim quando vieres no (ou em,
conforme rezam alguns manuscritos) teu reino”. O ladrão não esperava ser assim
lembrado a não ser em algum tempo no futuro distante. Mas a resposta de Jesus
prometeu a ele ainda mais do que ele tinha pedido: “Hoje estarás comigo no
paraíso” 37.
A palavra paraíso é usada aqui e
em duas outras passagens neotestamentárias: 2 Coríntios 12.4 e Apocalipse 2.7.
Na passagem de 2 Coríntios, Paulo nos conta que ele foi arrebatado ao paraíso
numa visão; a expressão paraíso é paralela a terceiro céu do
verso 2. Aqui, portanto, paraíso significa céu, o reino dos
mortos abençoados e a habitação especial de Deus38. Em Apocalipse
2.7, lemos acerca da árvore da vida que está no paraíso de Deus - aqui
novamente paraíso se refere ao céu, embora mais o estado final do
que o estado intermediário. Concluímos que Jesus prometeu, ao ladrão
arrependido, que este estaria com Ele na felicidade celestial naquele mesmo
dia. Nem é necessário dizer que esta promessa não exclui que Jesus também se
lembrará do ladrão por ocasião de sua Segunda Vinda, quando ele de fato,
finalmente, virá para o seu reino; mas ele afirmou que já, naquele dia,
imediatamente após sua morte, o ladrão arrependido desfrutará do gozo celestial
juntamente com Cristo39.
Estas palavras de Jesus nos dão um
relance breve, porém memorável, acerca da condição do povo de Deus após a
morte. Com certeza o sono da alma está excluído aqui, pois por que se dirigiam
estas palavras se, após a morte, o ladrão estivesse totalmente inconsciente de
estar com Cristo no paraíso? 40
Uma segunda passagem importante sobre o
estado intermediário é encontrada em Filipenses (1.21-23): “Portanto, para mim
o viver é Cristo, e o morrer é lucro. Entretanto, se o viver na carne traz
fruto para o meu trabalho, já não sei o que hei de escolher. Ora, de um e de
outro lado estou constrangido, tendo o desejo de partir e estar com Cristo, o
que é incomparavelmente melhor”.
No verso 20, Paulo expressou sua
certeza de que Cristo seria engrandecido em seu corpo seja pela morte ou pela
vida. No verso 21, ele faz a corajosa afirmação de que para ele o viver é
Cristo e o morrer é lucro. Por que Paulo chama aqui a morte de lucro? Alguém
poderia dizer que ele está considerando apenas o dia da ressurreição e não
falando coisa alguma do estado intermediário. O verso 23, porém, lança mais luz
sobre o assunto. Lá ele diz: “Meu desejo é partir e estar com Cristo, porque
isso é muito melhor”. Analysai (partir) é um aoristo infinitivo,
retratando a experiência instantânea da morte. Ligado por um artigo singular a analysai
está o infinitivo presente, einai (ser).
O artigo singular junta os dois infinitivos de modo que as ações representadas
por estes infinitivos devam ser considerados dois aspectos da mesma coisa, como
duas faces da mesma moeda41. O que Paulo está dizendo aqui é que, no
momento em que ele parte ou morre, naquele mesmo momento ele estará com Cristo.
Paulo não nos diz aqui exatamente como
ele estará com Cristo. Se ele estivesse se referindo apenas à ressurreição no
último dia, ele poderia tê-lo deixado claro - veja sua referência nada ambígua
à ressurreição do corpo em 3.20,21. Aqui, no entanto, ele está simplesmente
considerando o momento de sua morte. No momento em que eu morrer, diz Paulo, eu
estarei com Cristo. Esta condição, ele acrescenta, será “muito melhor” do que a
presente, rejeitando claramente a idéia de que, após a morte, ele entrará num
estado de sono-da-alma ou não-existência. Porque,
como poderia o sono-da-alma ou não-existência ser “muito melhor”
do que o estado atual no qual ele tem comunhão consciente, embora imperfeita,
com Cristo? 42
Novamente, vislumbramos alguma luz
sobre o estado intermediário - não uma grande luz, mas luz suficiente par anos
confortar. Poder-se-ia dizer, na verdade, que há um paralelo impressionante
entre o que Paulo diz aqui e o que Jesus disse ao ladrão arrependido: “ ‘Com
Cristo’ - isto é tudo o que Paulo conhece acerca do estado intermediário. Não
sobrepuja o que Jesus disse ao ladrão que morria (Lc 23.43)” 43.
Passemos agora à terceira passagem
neotestamentária importante sobre o estado intermediário: 2 Coríntios 5.6-8. No
entanto, para entender completamente estes versos, temos de começar pelo início
do capítulo. O verso 1 diz: “Sabemos que, se a nossa casa terrestre se
desfizer, temos da parte de Deus um edifício, casa não feita por mãos, eterna,
nos céus”. Parece claro que, com “casa terrestre deste tabernáculo”, que deve
ser destruída, Paulo denota o modo atual de existência sobre a terra, cheio de
tribulações e sofrimento (veja cap. 4.7-17), um modo tão temporário que pode
ser comparado a viver numa tenda. O maior problema de interpretação aqui é
determinar o que significa “o edifício de Deus, casa não feita por mãos”. Tem
havido, principalmente, três pontos de vista: (1) O edifício de Deus significa
uma espécie de corpo intermediário entre o corpo atual e o corpo da
ressurreição; os crentes receberiam este corpo intermediário na morte, mas na
Parousia o corpo intermediário seria substituído e sobrepujado pelo corpo
ressurreto44. (2) O edifício de Deus é o corpo ressurrecto que
deveremos receber na Parousia45. (3) O edifício de Deus descreve a
existência gloriosa do crente no céu, com Cristo, durante o estado
intermediário 46.
Não precisamos gastar muito tempo com a
primeira posição, uma vez que é dito que o “edifício de Deus” é eterno,
enquanto que o corpo intermediário, pressuposto nesta interpretação, seria
apenas temporário. Além disso, não há na Bíblia referência a tal “corpo
intermediário”. O único contraste de que Paulo trata, em 1 Coríntios 15, é
entre o corpo atual e o corpo ressurrecto.
Só nos resta escolher entre (2) o corpo
ressurrecto e (3) a existência gloriosa dos crentes no estado intermediário
após a morte. É realmente muito difícil escolher entre estas duas posições.
Existem elementos neste verso e no capítulo inteiro que, realmente, sugerem a
idéia do corpo ressurrecto: por exemplo, a idéia de ser revestido ou de vestir
nossa habitação celestial (v.2), e a declaração de que quando estivermos
vestido o que é mortal será tragado pela vida -, uma declaração que nos lembra
a figura de 1 Coríntios 15.53: “Porque é necessário que este corpo corruptível
se revista da incorruptibilidade, e que o corpo mortal se revista da
imortalidade”. Por outro lado, há elementos no capítulo que parecem indicar o
estado intermediário: por exemplo, a casa não feita por mãos é descrita como
estando nos céus. Com certeza, não deveremos pensar acerca de nossos corpos,
ressurrectos sendo guardados para nós em algum lugar, nos céus, não é assim?
Outra dificuldade com a segunda posição é o tempo presente de “nós temos” (echomen)
no verso 1. Se Paulo estivesse pensando no corpo ressurrecto, por que ele não
disse: “nós teremos”?
Embora se possa defender,
plausivamente, tanto a interpretação (2) como a (3), nenhuma posição é
completamente satisfatória. Por causa disso, o comentário de Calvino sobre o
verso em questão é bem impressionante. Após ter apresentado algumas das
dificuldades da passagem, Calvino diz em seu comentário de 2 Coríntios: “... Eu
prefiro entendê-lo [v.1] como indicando que a condição de bênção da alma após a
morte, é o início deste edifício, e a glória da ressurreição final é a sua
consumação” 47. Em outras palavras, a interpretação de Calvino
combina as posições (2) e (3) acima. O “estado intermediário” e o “corpo
ressurrecto” não são entendidos aqui como um “ou-ou” mas como um “tanto-como”.
Esta interpretação da passagem, assim me parece, faz mais jus às palavras de
Paulo e nos ajuda a compreender o futuro do crente como uma experiência
unitária, embora dividida pela ressurreição em duas etapas. Ambas as etapas,
porém envolvem uma experiência de glória celestial.
Portanto, o verso 1 nos relata o que
acontece imediatamente após a morte: No momento em que a tenda terrestre, em
que vivemos agora, estiver destruída ou dissolvida (o tempo aoristo de katalythe
sugere o momento em que a morte acontece), nós temos imediatamente, não em
algum tempo futuro, um edifício de Deus. Isto é, tão logo nós, eu estamos em
Cristo, morrermos, entramos numa existência celestial gloriosa, que não é
temporária como a nossa existência atual, mas sim permanente e eterna. Embora a
primeira fase desta existência venha a ser incompleta, esperando pela
ressurreição do corpo na Parousia, todo este modo de eternidade, será glorioso,
muito mais desejável do que nossa existência presente.
Nos versos seguintes, Paulo desenvolve
mais o que disse no verso 1. No verso 2 ele afirma que, uma vez que nossa vida
terrena é cheia de aflições, nós, que somos crente, ansiamos por vestir ou por
ser revestidos com nossa habitação celestial - observe que aqui Paulo combina
as figuras de lugar de morada e vestimenta. O verso 3: “desde que estamos
vestidos, não seremos achados nus” (NIV), nos faz indagar sobre o que Paulo
quer dizer com nudez. Vários comentaristas, especialmente aqueles que
interpretam o “edifício de Deus” como sendo o corpo ressurrecto, entendem a
nudez do verso 3 como denotando a existência incorpórea que precede a
ressurreição 48. Dessa forma, as palavras de Paulo são interpretadas
de modo a significar que ele evita a idéia de se estar em tal condição
incorpórea. Mas evitar isto, seria inconsistente com o que ele diz em
Filipenses 1.23, bem como com o que diz no verso 8 deste capítulo. Se, contudo,
entendermos o “edifício de Deus” como indicando o modo celestial de existência,
que começa imediatamente após a morte e culmina no corpo ressurrecto, poderemos
interpretar a nudez aqui mencionada como indicando a falta da glória completa
deste tipo celestial de existência. Neste sentido, mesmo nossa vida terrena
atual é caracterizada pela nudez, em distinção com sermos revestido com a
glória celestial. No verso 4, Paulo indica que suspiramos com ansiedade,
enquanto ainda estamos em nossa tenda terrena, não por desejarmos ser despidos,
mas porque queremos ser revestidos com nossa habitação celestial. Anelamos por
esta existência celestial futura, para que a mortalidade de nosso modo atual de
ser possa ser tragada pela vida gloriosa e infinita que nos aguarda.
Isto nos traz aos versos 6 a 8: “Temos,
portanto, sempre bom ânimo, sabendo que, enquanto no corpo, estamos ausentes do
Senhor; (7) visto que andamos por fé, e não pelo que vemos (8). Entretanto,
estamos em plena confiança, preferindo deixar o corpo e habitar com o Senhor”.
Por que Paulo diz que, enquanto estivermos no corpo, estamos ausentes do
Senhor? É porque na vida atual “nós andamos por fé, não pela vista”; isto é,
nossa comunhão atual com o Senhor, embora seja boa, ainda deixa muito a
desejar. Por isso Paulo segue dizendo: “preferindo deixar o corpo e habitar com
o Senhor”. Aqui ele não está falando da ressurreição mas sim do que acontece
imediatamente após a morte. Isto fica evidente, também, a partir dos tempos dos
verbos usados. Encontramos dois tempos aoristo no verso 8: ekdemesai
(estar ausente) e endemesai (estar em). O tempo aoristo, no grego,
sugere instantaneidade, ação instantânea. Enquanto que o tempo presente dos
mesmos verbos, no verso 6, retrata uma habitação contínua no corpo e uma
ausência contínua do Senhor, os aoristos infinitivos do verso 8 indicam um
acontecimento momentâneo, que ocorre uma vez por todas. O que poderia ser isto?
Só existe uma resposta: a morte, que é uma transição imediata de estar no corpo
para estar ausente do corpo. No exato momento em que isso acontece, diz Paulo,
começarei a estar presente com o Senhor. A palavra pros (na expressão pros
ton kyrion, “com o Senhor”) sugere uma comunhão muito íntima com o Senhor,
implicando que a comunhão com Cristo, que será experienciada após a morte, será
mais rica do que a que era experienciada aqui na terra. Em outras palavras,
Paulo espera que no momento da morte ele esteja presente com o Senhor.
Paulo não nos conta, exatamente, como
experimentaremos esta proximidade com Cristo após a morte. Não temos descrição
da natureza desta comunhão; não podemos formar uma imagem de como será. Uma vez
que não estaremos mais no corpo, deveremos ser libertos dos sofrimentos,
imperfeições e pecados que afligem esta vida presente. Mas nossa glorificação
não será completa até que tenha acontecido a ressurreição do corpo. Por causa
disso, a condição dos crentes, durante o estágio intermediário, conforme é
ensinado por Calvino, é uma condição de ser incompleto, de antecipação, de
felicidade provisória.
A Bíblia não tem doutrina independente
acerca do estado intermediário. Seu ensino sobre este estado nunca deve ser
separado de seu ensino sobre a ressurreição do corpo e a renovação da terra.
Por causa disso, como diz Berkouwer, o crente deveria ter não uma “expectação
dupla” do futuro, mas uma “expectação única” 50. Aguardamos uma
existência eterna e gloriosa com Cristo após a morte, uma existência que
culminará na ressurreição. Portanto, o estado intermediário e a ressurreição
devem ser considerados como dois aspectos de uma esperança única 51.
Ao mesmo tempo, o ensino bíblico sobre
o estado intermediário é de grande importância. Os crentes que morreram são “os
mortos em Cristo” (1 Ts 4.16); estejam eles visos ou mortos, eles são do Senhor
(Rm 14.8). Nem a morte nem a vida, nem qualquer outra coisa em toda a criação,
será capaz de separá-los do amor de Deus em Cristo Jesus (Rm 8.38,39).
Este ensino deveria nos trazer grande
conforto. Nos termos da imagem de 2 Coríntios 5.6-8, nossa vida atual é um
estar ausente do Senhor, uma espécie de peregrinação. A morte, para o cristão,
entretanto, é um chegar em casa. É o fim de sua peregrinação; é seu retorno à
sua casa verdadeira.
Notas do Capítulo 9
1. Enchiridion, p.109.
2. Cp Thomas Aquinas, Summa Theologica,
Supp.3, Q69, Art.2.
3. P. Althaus, Die Letzten Dinge (As
Últimas Coisas), Sétima Ed., Gutersich: Bertelsmann, 1957, pp. 146-149. Cp.
Francis Pieper, Christian Dogmatics (Teologia Dogmática Cristã), St.
Louis: Concordia, 1963, III, 512, número 21.
4. O texto desta obra pode ser encontrado na
obra de Calvino: Tracts and Treatises of the Reformed Faith (Tratos e
Tratados da Fé da Reforma), trad por H. Beveridge, Grand Rapids: Eerdmans,
1958, III, pp. 413-490. Veja Berkouwer, Return, pp. 49,50.
5. E.G. Charles Hodge, Systematic Theology (Teologia
Sistemática), Grand Rapids: Eerdmans, 1940, III, pp. 713-703, W.G.T. Shedd, Dogmatic
Theology (Teologia Dogmática), III, p.591-640; Herman Bavinck, Gereformeerd
Dogmatiek, Quarta Ed., IV, pp. 564-622 (Terceira Ed., pp. 645-711);
L.Berkhof, Systematic Theology (Teologia Sistemática), pp. 679-693; G.C.
Berkouwer, Return, pp. 32-64.
6. Catecismo de Heidelberg, Q.57; confissão
Belga, art.37; Confissão de Westminster, cap. 32 (ou 34); Catecismo Abreviado
de Westminster, Q.37; Catecismo Ampliado de Westminster, Qs. 86, 87.
7. Return, pp. 38-46.
8. Onsterfelijkheid
of Opstanding, Segunda Ed., Assen: Van Goecum, 1936, pp. 35 e 37.
9. Ibid., p.36.
10. Ibid., pp. 36, 37.
11. Ibid., p.38. O ponto de vista de Van der Leew é de várias maneiras
similar aos ensinos das Testemunhas de Jeová e Adventistas do Sétimo Dia sobre
este assunto; veja minha obra Four Mjor Cults (Quatro Maiores Seitas),
pp. 135, 136, 293-295.
12. Die Letzten Dinge (As Últimas Coisas), p. 155.
13. Ibid., p. 157.
14. Ibid., p. 155.
15. Ibid.
16. Ibid., pp. 155-158.
17. Ibid., p. 156.
18. Ibid., p. 156, 157.
19. Ibid.,
p. 158.
20. De Wederjomst van Christus (A Volta de Cristo) Kampen: Kok, 1961, I, p.79, onde
Berkouwer diz: “Quando nossa existência terrena tiver findado, quem desejará
dizer mais do que o claro sussurro do Novo Testamento?” [tradução do autor]. A
tradução inglesa desta sentença, encontrada na página 63 de The Return of
Christ (A Volta de Cristo), não reproduz acuradamente a palavra holandesa fluistering
(Whispering, sussurro), traduzindo-a por proclamação: “Quem
pretenderá ser capaz de adicionar qualquer coisa à proclamação do Novo
Testamento?”
21. Berkouwer, Return,
p.51. Cp. H.Ridderbos, Paul, p.507.
22. Chicago: Univ.
of Chicago Press, 1957, pp. 901, 902.
23. Sobre estas passagens ver Hoekema, The Four
Major Cults (As Quatro Maiores Seitas), pp. 346-349.
24. Ibid.,
pp. 349-351.
25. Sobre este assunto ver o útil capítulo de Berkouwer: “The
Whole Man” (O Homem Integral) em Man: The Image of God (O Homem: A
Imagem de Deus), pp. 194-233.
26. A Theology of the New Testament (Uma Teologia do Novo Testamento) Grand Rapids: Eerdmans,
1974, p. 194.
27. Systematic Theology (Teologia Sistemática), pp. 685, 686. Sobre o ensino de
que Sheol possa significar o lugar de punição ou inferno. Ver também
W.G.T.Shedd, Dogmatic Theology (Teologia Dogmática), II, pp. 625-633.
28. Ver L. Berkhof,
op.cit., p. 685.
29. Neste ponto podemos ver pelo menos um esboço do
pensamento de que Sheol possa designar um lugar de punição para os ímpios - no
sentido de que os injustos deverão permanecer no Sheol, enquanto que os justos
serão libertos daquele reino.
30. Sobre esta passagem, veja N. Ridderbos, De
Psalmen (Os Salmos), Kampen: Kok, 1962, p. 176; D. Kidner, Psalms (Exposição
dos Salmos), Columbus: Wartburg, 1959, ad loc. Sobre o conceito de Sheol ver
Strack-Billerbeck, Kommentar zum Neuen Testament aus Talmud und
Midrasch (Comentário do Novo Testamento a partir do Talmude e do Midraxe),
München: C. H. Beck, 1928, IV/2, pp. 1016-1029.
31. Cp N.
Ridderbos, op.cit., ad loc; Kidner, op.cit., ad loc; Leupold, op.cit.,ad
loc.
32. Delitzsh, op.cit.,
ad loc. D. Kidner, Psalms 73-150 (Salmo 73 a 150), Downers Grove,
Inter-Varsity Press, 1975, ad loc; Leupold, op.cit, ad loc.
33. J. Jeremias, “hades”,
TDNT, I, p. 147, Cp Strack-Billerbeck, op.cit, IV/2, pp.1016-1022.
34. Loc.cit,. p.148.
35. A palavra neotestamentária para o lugar de
punição, no estado final é Gehenna, acerca da qual falaremos mais
adiante.
36. Calvino, em seu comentário ad loc, diz
que embora o particípio kolazomenous esteja no tempo presente, deveria
ser entendido como se referindo a uma punição futura que será administrada no
último julgamento. Mas, se esta era a intenção de Pedro, porque usou ele o
tempo presente?
37. Para fazer a palavra hoje ser vista
juntamente com as palavras “ele lhe disse”, como, e.g., os Adventistas do
Sétimo Dia e as Testemunhas de Jeová fazem para fazer o verso se encaixar em
seus ensinos, é injustificado. Pois, quando senão hoje poderia Jesus dizer
essas palavras? A razão pela qual Jesus acrescentou a palavra hoje fica
evidente a partir do pedido anterior ver Hoekema, The Four Major Cults (As
Quatro Maiores Seitas). p.353.
38. Ver Phipip E. Hughes, Paul’s Second Epistle
to the Corinthians (A Segunda Epístola de Paulo aos Coríntios), Grand
Rapids: Eerdmans, 1962, pp. 432-437.
39. Sobre esta passagem, ver também os comentário de Lucas por N.Geldenhuys, Grand Rapids,
Eerdmans, 1962, e L.Morris, Grand Rapids: Eerdmans, 1974. Sobre o significado
de paraíso, ver Strack-Billerbeck, op.cit, II pp. 264-269; IV/2,
pp. 1118-1165.
40. A posição dos Adventistas do Sétimo Dia e das Testemunhas
de Jeová fica, igualmente, excluída por esta passagem. Sua posição não é do
“sono da alma”, mas antes da “extinção da alma”, uma vez que sustentam que após
a morte nada do homem sobreviverá, e que, então o homem deixa de existir.Ver
Hoekema, The Four Major Cults (As Quatro Maiores Seitas), pp. 110, 111,
135, 136, 265, 266, 293, 294, 345-359.
41. Ver A T. Robertson, Grammar of the Greek
Testament in the Light of Historical Research (Gramática do Testamento
Grego à Luz da Pesquisa Histórica) Nashville: Broadman, 1934, p. 787. Cp F. Blass e A
Debrunner, A Greek Grammar of the New Testament (Gramática Grega do Novo
Testamento), trad. Por R.W. Funk, Chicago: Univ. of Chicago Press, 1961, seç
276 (3).
42. Sobre esta passagem cp H. Ridderbos, Paul,
pp. 498, 499; G.C. Berkouwer, Return, pp. 53,54.
43. G.E.Ladd, A Theology of the New Testament (Teologia
do Novo Testamento), p. 553.
44. Entre os que defendem esta posição estão R.H.
Charles, Eschatology: The Doctrine of a Future Life in Israel, Judaim, and Christianity
(Escatologia: A Doutrina da Vida Futura em Israel, no Judaísmo e no
Cristianismo), New York: Schocken, 1963; originalmente publicado em 1913, pp.
458-461; W.D. Davies, Paul and Rabinic Judaism (Paulo e o Judaísmo
Rabínico), ed. rev. New York, harper and Row, 1967; Orig. pub. 1955, pp. 309-319;
Henry M. Shires, The Eschatology of Paul (A Escatologia de Paulo) p.90;
D.E.H. Whiteley, The Theology of St.Paul (A Teologia de São Paulo),
Philadelphia: Fortpress, 1966, p. 269.
45. James Denney, Second
Epistle to the Corinthians (Segunda Epístola aos Coríntios), New York,
Armstrong, 1903, ad loc; Floyd V. Filsom, The Second Epistle to the
Corinthians (A Segunda Epístola aos Coríntios), in The Interpreter’s
Bible (A Bíblia do Intérprete, New York: Abingdon, 1952, vol X, ad loc;
Philip E. Hughes, Paul’s Second Epistle to the Corinthians (A Segunda
Epístola de Paulo aos Coríntios), ad loc; H.Ridderbos, Paul, pp.
499-501.
46. Herman Bavinck,
Gereformeerd Dogmatick, Quarta Ed., IV, p. 596 (Terceira Ed., pp. 681,
682). João Calvino, Second Corinthians (Segunda aos Coríntios) ad
loc; Charles Hodge, II Corinthians (II Coríntios) ad loc;
Charles Hodge, II Corinthians (2 Coríntios) ad loc; R.C.H.Lenski,
II Corinthians (2 Coríntios), ad loc; R.V.G.Tasker, II
Corinthians (Tyndale Bible Commentary), (2 Coríntios - Comentário Bíblico
Tyndale), ad loc; G.C. Berkouwer, Return, pp. 55-59.
47. Transcr. John
Pringle, Grand Rapids, Eerdmans, 1948, ad loc.
48. E.g., Hughes,
Filson, Denney, Plummer.
49. Cp G. Vos, Pauline Eschatology (Escatologia
Paulina), p. 194: “Ele [Paulo] dificilmente teria se expressado exatamente
dessa forma, caso ele quisesse dizer que o corpo seria imediatamente
substituído por outro, pois o estado desse novo corpo dificilmente poderia ser
descrito como um estado de ausência do corpo”.
50. Return,
Cap.2, “Expectação Dupla?” pp. 32-64.
51. A interpretação fornecida acima do “edifício de
Deus” (2 Coríntios 5.1), como se referindo tanto ao estado intermediário quanto
ao corpo ressurrecto, sustenta a idéia de uma expectação escatológica única.
Sobre esta passagem, bem como sobre outras passagens discutidas neste capítulo,
ver também Karel Hanhart, The Intermediate State in the New Testament (O
Estado Intermediário no Novo Testamento), Franeker: Wever, 1966.
Fonte:
A Bíblia e o Futuro, por
Anthony A Hoekema – Editora Cultura Cristã
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