sexta-feira, 17 de agosto de 2012

CRIANÇA TEM ANJO DA GUARDA? DITOS DIFÍCEIS DE JESUS - III


Vede, não desprezeis a qualquer destes pequeninos; porque eu vos afirmo que os seus anjos nos céus vêem incessantemente a face de meu Pai celeste” (Mateus 18:10).

Em certa ocasião, desejando dar aos discípulos uma lição sobre humildade (Mt 18.1), o Senhor Jesus chamou uma criança para perto de si (v. 2) e ensinou aos discípulos a necessidade de alguém se tornar como uma delas para entrar no Reino (v. 3-4). Receber uma criança no nome do Senhor significa receber ao próprio Senhor (v. 5). Em seguida, o Senhor falou do castigo dos que colocam tropeços diante dos “pequeninos” que crêem nEle (v. 6-9) e advertiu os discípulos a que não os desprezassem, diante do cuidado vigilante de Deus por eles, através dos anjos (v. 10).

Este dito é difícil porque sugere a existência de “ anjos da guarda” de crianças, que estariam constantemente na presença de Deus, velando e cuidando das crianças. O conceito de que cada crente tem um anjo da guarda enviado por Deus sempre foi popular entre os cristãos, e tem se tornado ainda mais popular com a crescente onda de fascínio pelos anjos que tem invadido as igrejas evangélicas, acompanhando o aumento do misticismo e do ocultismo no mundo.

Há várias interpretações para este dito difícil de Jesus.

1. Os anjos no céu são as almas das crianças quando morrem.

De acordo com este entendimento, Jesus ensinou que as almas das crianças (os “anjos” delas) vão para o céu após a morte das crianças, e ficam continuamente na presença de Deus. De acordo com esta interpretação, Jesus mandou que os discípulos não desprezassem as crianças pois elas, quando morrem, vão, na forma de anjos, morar na presença de Deus. Alegam que Jesus se referiu aos “seus anjos no céu”, indicando que se refere ao que acontece após a morte. A dificuldade óbvia com esta interpretação é que identifica alma com anjo, uma associação impossível à luz do Novo Testamento. A alma faz parte da personalidade humana, enquanto que um anjo é um ser distinto do homem. As pessoas não se transformam em anjos quando morrem, conforme a crendice popular, mas suas almas comparecem, como almas, à presença de Deus.

2. Cada criança tem um anjo da guarda.

Outra interpretação entende que a expressão “seus anjos” se refere a anjos destacados por Deus para guardar cada criança, e que neste labor, eles ficam subindo constantemente ao céu, na presença de Deus, para dar relatórios de suas atividades e interceder em favor das crianças. Esta doutrina é defendida pela Igreja Católica, que diz que no batismo cada criança recebe seu anjo da guarda, que é enviado por Deus para proteger e aconselhar esta criança toda a sua vida. Esse anjo é também chamado, na teologia católica, de "anjo custódio".

Há várias passagens bíblicas usadas para defender esta interpretação. “O anjo do SENHOR acampa-se ao redor dos que o temem e os livra” (Salmo 34:7) é uma das mais conhecidas. Também Gênesis 48.16, onde Jacó se refere a um anjo que o teria livrado de todo o mal (na verdade, refere-se ao anjo do Senhor). Menciona-se também o anjo que veio em socorro de Daniel (Dn 6.22). Estas e outras passagens entretanto não provam o ponto, apenas mostram que Deus envia anjos para proteger e salvar seus servos em determinados momentos. A idéia de “ anjo da guarda” para cada criança é bastante estranha à luz da doutrina bíblica, muito embora esteja claro que uma das funções dos anjos é proteger os filhos de Deus. Nenhuma das passagens geralmente usadas para provar a existência de “anjo da guarda” realmente prova coisa alguma. Ao final, existe muita influência da crendice e da superstição popular sobre o assunto.

3. Os “pequeninos” são os crentes em Jesus Cristo.

A outra interpretação defende que a chave para entendermos este dito difícil de Jesus é a palavra “pequeninos”. A quem Jesus se refere? O termo pode ser tomado literalmente como se referindo às crianças, como as duas interpretações acima o fazem, ou figuradamente, como se referindo aos discípulos de Jesus. Esta última possibilidade resolve o problema e tem apoio bíblico. Primeiro, Jesus usa regularmente o termo “pequeninos” para se referir aos discípulos, cf Mt 10.42; 18.6; Mc 9.42; Lc 17.2. Note que nos versos 1-5 Ele se referiu claramente às “crianças”, e nos versos 6-10 Ele menciona os “pequeninos”.  Segundo, os discípulos são comparados com crianças, no que diz respeito à confiança em Deus. Terceiro, a passagem se encaixa no ensino geral do Novo Testamento sobre o ministério dos anjos em favor dos filhos de Deus, como Hebreus 1.14. Portanto, a melhor explicação para esta passagem é que Jesus está ensinando que Deus envia seus anjos para assistir aos “pequeninos”, que são os seus discípulos, os filhos de Deus pela fé, comparados a crianças, e que, portanto, nós não devemos desprezar estes “pequeninos”. Esse ministério angélico para com os “pequeninos” faz parte do cuidado geral que os anjos desempenham, pelo povo de Deus (cf. Sl 91.11; Hb 1.14; Lc 16.22).

A passagem não está ensinando que cada crente ou criança tem seu próprio “anjo da guarda”, como era crido popularmente  entre os judeus na época da igreja primitiva. Fazia parte desta crença que o “anjo guardião” poderia tomar a forma do seu protegido (cf. At 12.15). Ela simplesmente expressa o cuidado geral de Deus por seu povo através dos anjos

SE EU TIVER FÉ, PODEREI FAZER MAIS MILAGRES DO QUE JESUS? DITOS DIFÍCEIS DE JESUS – IV

Por Augustus Nicodemus

Em verdade, em verdade vos digo que aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai (João 14.12).

Jesus fez esta promessa aos seus discípulos na noite em que foi traído, antes de ir com eles para o Getsêmani, durante o jantar em que instituiu a Ceia. O Senhor falou que iria para o Pai preparar lugar para os discípulos (Jo 14.1-4), e em seguida explicou como eles chegariam lá (14.5-6). Respondendo ao pedido de Filipe para que lhes mostrasse o Pai, Jesus explica que Ele está de tal forma unido ao Pai, que vê-lo é ver o Pai (14.7-9). E como prova de que Ele está no Pai e o Pai está nEle, Jesus aponta para as obras que realizou (14.10-11). E em seguida, faz esta promessa, “aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai” (14.12).

Este dito de Jesus é difícil porque parece prometer que seus discípulos seriam capazes de realizar os milagres que Ele realizou, e até mesmo maiores, se somente cressem nEle – e pelo que lemos no livro de Atos e na história da Igreja, esta promessa não parece ter-se cumprido. Compreender o real sentido desta passagem tem se tornado ainda mais crucial pois ela tem sido usada, após o surgimento do movimento pentecostal e seus desdobramentos, para defender modernas manifestações miraculosas, iguais e maiores dos que as efetuadas pelo próprio Jesus Cristo.

Há duas principais tentativas de interpretar este dito de Jesus:

1. As “obras” são os milagres físicos realizados por Jesus

A interpretação popular e mais comum, aceita pela maioria dos evangélicos no Brasil (esta maioria, por sua vez, é composta na maior parte por pentecostais e neopentecostais), é que Jesus realmente prometeu que seus discípulos seriam capazes de realizar os mesmos milagres que Ele realizou, e mesmo maiores. É importante notar que muitos membros de igrejas históricas, como presbiterianos, batistas, congregacionais e episcopais, entre outros, também foram influenciados por este ponto de vista. Nesta interpretação, a palavra “obras” é entendida exclusivamente como se referindo aos milagres físicos que Jesus realizou, como curas, exorcismos e ressurreição de mortos. Os adeptos desta interpretação entendem que existem hoje pastores, obreiros e crentes com capacidade para realizar os mesmos milagres de Jesus – e até maiores. Defendem que curas, visões, revelações e de outras atividades miraculosas estão acontecendo no seio de determinadas igrejas nos dias de hoje, exatamente como aconteceram nos dias de Jesus e dos apóstolos. E desta perspectiva, se uma igreja evangélica não realiza estes sinais e prodígios, significa que ela é fria, morta, sem fé viva em Jesus.

Apesar desta interpretação parecer piedosa e cheia de fé (e é por isto que muitos a aceitam), tem algumas dificuldades óbvias. Primeira, apesar dos milagres que realizaram, nem os apóstolos, que foram os cristãos mais próximos desta promessa, parecem ter suplantado aqueles de Jesus, em número e em natureza. Jesus andou sobre as águas, transformou água em vinho, acalmou tempestades e suas curas, segundo os Evangelhos, atingiram multidões. Não nos parece que os apóstolos, conforme temos no livro de Atos, suplantaram o Mestre neste ponto. Segundo, a História da Igreja não registra, após o período apostólico, a existência de homens que tivessem os mesmos dons miraculosos dos apóstolos e que tenham realizado milagres ao menos parecidos com os de Jesus. Na verdade, os grandes homens de Deus na História da Igreja nunca realizaram feitos miraculosos desta monta, como Agostinho, Lutero, Wycliffe, Calvino, Bunyan, Spurgeon, Moody, Lloyd-Jones, e muitos outros. Os pregadores pentecostais que afirmam ser capazes de realizar milagres semelhantes, e ainda maiores, não têm um ministério de cura e milagres consistente e ao menos semelhantes aos de Jesus. O famoso John Wimber, um dos maiores defensores das curas modernas, morreu de câncer na garganta. Antes de morrer, confessou que nunca conseguiu curar uma criança com problemas mentais, e nem conhecia ninguém que o tivesse feito. Os cultos de cura de determinadas igrejas neopentecostais alegam milagres que são de difícil comprovação. Terceiro, esta interpretação deixa sem explicação o resto da frase de Jesus: “aquele que crê em mim fará também as obras que eu faço e outras maiores fará, porque eu vou para junto do Pai” (14.12). E por último, esta interpretação implica que os cristãos que não fizeram os mesmos milagres que Jesus fez não tiveram fé suficiente, e assim, coloca na categoria de crentes “frios” os grandes vultos da História da Igreja e milhões de cristãos que nunca ressuscitaram um morto ou curaram uma doença.

Esclareço que não estou dizendo que Deus não faz milagres hoje. Creio que Ele faz, sim. Creio que Ele é poderoso para agir de forma sobrenatural neste mundo e que Ele faz isto constantemente. O que estou questionando é a interpretação desta passagem que afirma que se tivermos fé faremos milagres maiores do que aqueles realizados por Jesus.

2. As “obras” se referem ao avanço do Reino de Deus no mundo

A outra interpretação entende que Jesus se referia obra de salvação de pecadores, na qual, obviamente, milagres poderiam ocorrer. Os principais argumentos em favor desta interpretação são estes:

a. A expressão “quem crê em mim” é usada consistentemente no Evangelho de João para se referir ao crente em geral, em contraste com o mundo que não crê. Examine as passagens abaixo:

Jo 6:35 Declarou-lhes, pois, Jesus: Eu sou o pão da vida; o que vem a mim jamais terá fome; e o que crê em mim jamais terá sede.
Jo 6:47 Em verdade, em verdade vos digo: quem crê em mim tem a vida eterna.
Jo 11:25-26 Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra, viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente. Crês isto?
Jo 12:46 Eu vim como luz para o mundo, a fim de que todo aquele que crê em mim não permaneça nas trevas.

Fica claro pelas passagens acima que aqueles que crêem em Jesus são os crentes em geral, e que a fé em questão é a fé salvadora. Por analogia, a expressão “quem crê em mim” em João 14.12 também se refere a todo crente, e não àqueles que teriam uma fé tão forte que seriam capazes de exercer o mesmo poder de Jesus em realizar milagres – e até suplantá-lo!

b. O termo “obras” referindo-se às atividades de Jesus, é usado no Evangelho de João para se referir a tudo aquilo que Ele fez, conforme determinado pelo Pai, para mostrar Sua divindade, para salvar pecadores e para glorificar ao Pai. Veja estas passagens: Jo 4:34; 5:20,36; 6:28,29; 7:3; 9:3,4; 10:25,32,33,37,38; 14:10,11; 14:12; 15:24; 17:4. O termo “obras” não se refere exclusivamente aos milagres de Jesus, muito embora em algumas ocorrências os inclua. No contexto da passagem que estamos examinando, Jesus usa o termo “obras” para se referir às palavras que Ele tem falado: “Não crês que eu estou no Pai e que o Pai está em mim? As palavras que eu vos digo não as digo por mim mesmo; mas o Pai, que permanece em mim, faz as suas obras” (Jo 14.10). É evidente, portanto, que não se pode entender o termo “obras” em Jo 14.12 como se referindo exclusivamente aos milagres físicos realizados por Jesus. O termo é muito mais abrangente e se refere à sua toda atividade terrena realizada com o fim de salvar pecadores: palavras, atitudes e, sem dúvida, milagres.

c. A frase “porque eu vou para junto do Pai” fornece a chave para entender este dito difícil. Enquanto Jesus estava neste mundo, sua ação salvadora era limitada pela sua presença física. Seu retorno à presença do Pai significava a expansão ilimitada do Reino pelo mundo através do trabalho dos discípulos, começando em Jerusalém e até os confins da terra. Como vimos, as “obras” que Ele realizou não se limitavam apenas aos milagres físicos, mas incluíam a influência dos mesmos nas pessoas e a pregação do Reino efetuada por Jesus. Estas obras, porém, estavam limitadas pela Sua presença física em apenas um único lugar ao mesmo tempo. As “obras maiores” a ser realizadas pelos que crêem devem ser entendidas deste ponto de vista: os discípulos, através da pregação da Palavra no mundo todo, suplantaram em muito a área de atuação e influência do Senhor Jesus, quando encarnado.

Adotar a interpretação acima não significa dizer que milagres não acontecem mais hoje. Estou convencido de que eles acontecem e que estão implícitos neste dito do Senhor Jesus. Entretanto, eles ocorrem como parte da obra de expansão do Reino, que é a obra maior realizada pela Igreja.

O dito de Jesus, portanto, não está prometendo que qualquer crente que tenha fé suficiente será capaz de realizar os mesmos milagres que Jesus realizou e ainda maiores – a Escritura, a História e a realidade cotidiana estão aí para contestar esta interpretação – e sim que a Igreja seria capaz de avançar o Reino de Deus de uma forma que em muito suplantaria o que Jesus fez em seu ministério terreno. Os milagres certamente estariam e estão presentes, não como algo que sempre deve acontecer, dependendo da fé de alguns, e não por mãos de pretensos apóstolos e obreiros super-poderosos, mas como resposta do Cristo exaltado e glorificado às orações de seu povo.

PAUL WASHER: MEU POVO PERECE POR FALTA DE CONHECIMENTO!



Fonte: Editora Fiel

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

FRANCIS SCHAEFFER – UMA FORTE VISÃO DAS ESCRITURAS



Neste vídeo de 2 min., Francis Schaeffer fala sobre a importância do fundamento das Escrituras. Vejo que hoje há (pelo menos) duas vertentes que atacam este doutrina tão importante: (1) os liberais e neo-ortodoxos que rebaixam às Escrituras ao nível humano e (2) os (falsos) “apóstolos” que elevam a autoridade humana ao nível das Escrituras – inspiração. Se você ouve em sua “igreja” coisas como “a Bíblia não é um livro de Deus” ou “quando eu estiver no céu vou chegar para Paulo e, de apóstolo para apóstolo, dizer: ‘você estava errado neste ponto’, minha sugestão é: corra por sua vida!

“De nada vale ter grandes números se é tudo uma ilusão. Abraçar ou não uma forte visão das Escrituras é o divisor de águas do mundo evangélico.” (Francis Schaeffer)



DEUS CAUSA AS NOSSAS DECISÕES?

Por John Frame

Será que Deus causa as nossas decisões? Algumas delas? Nenhuma delas? Outra hora, discutirei a natureza da responsabilidade e da liberdade humanas. Mas aqui devemos encarar o fato de que as nossas decisões não são independentes de Deus e, que, portanto, a nossa definição de liberdade deve ser, de algum modo, consistente com a soberania de Deus sobre a vontade humana.

Na nossa avaliação da história da redenção, vimos que Deus causou as decisões livres de certas pessoas, como a dos irmãos de José (Gn 45.5-8), Ciro (Is 44.28) e a de Judas (Lc 22.22; At 2.23,24; 3.18; 4.27,28; 13.27). Portanto, não devemos nos deixar influenciar preconceituosamente pela idéia não-bíblica, mas popular, de que Deus nunca predestina as nossas decisões livres.

Ademais, vimos que Deus decreta os acontecimentos da natureza e os acontecimentos da nossa vida cotidiana. Como seria possível que tamanho envolvimento divino na nossa vida não acabasse por influenciar profundamente as nossas decisões? Deus nos fez, por dentro e por fora. Para nos fazer como somos, ele precisou controlar a nossa hereditariedade.

Assim sendo, ele nos deu os pais que temos, e seus pais e os pais deles. E para nos dar nossos pais, Deus precisou controlar muitas de suas decisões livres (como a decisão livre dos pais de Jeremias para se casarem) e os de seus pais e avós, etc. Além disso, vimos que Deus nos colocou no nosso ambiente, em situações que requerem de nós certas decisões. Ele decide quanto tempo iremos viver e faz acontecer nossos sucessos e fracassos, mesmo que esses acontecimentos dependam habitualmente de nossas livres decisões, em acréscimo a fatores externos.


Negativamente, os propósitos de Deus excluem muitas decisões livres que seriam, de outra maneira, possíveis. Visto que Deus havia planejado levar José ao Egito, os seus irmãos não estavam, num sentido importante, livres para o matar, mesmo tendo, a certa altura, planejado fazê-lo. Golias também não podia matar Davi, nem Jeremias poderia ter morrido antes de nascer. Os soldados romanos também não podiam quebrar as pernas de Jesus quando ele estava pendurado naquela cruz, pois os profetas de Deus haviam declarado algo diferente.


No entanto, além dessas inferências, as Escrituras nos ensinam diretamente que Deus causa as nossas decisões livres. Ele não somente predestina o que acontece conosco, como também o que escolhemos fazer.


A origem da decisão humana é o coração. Jesus diz que tanto as coisas boas quanto as más vêm do coração (Lc 6.45). Porém, esse coração está sob o controle de Deus: "Como ribeiros de águas assim é o coração do rei na mão do SENHOR; este, segundo o seu querer, o inclina" (Pv 21.1). Certamente, como já vimos, é isso o que Deus fez com Ciro. Isso também é o que ele fez com o Faraó do Êxodo (Rm 9.17; cf. Êx 9.16; 14.4).

Deus dirige o coração, não somente de reis, mas de todas as pessoas (SI 33.15). Assim, ele controlou não somente o coração de Faraó, mas também o de todo o povo egípcio, dando a eles uma disposição favorável aos israelitas (Ex 12.36). A Escritura ressalta que essa mudança foi obra do Senhor. Ela menciona que Deus havia predito esse acontecimento no seu encontro com Moisés na sarça ardente (Ex 3.21,22).

Deus, que forma os propósitos do nosso coração, também decide os passos que devemos dar para cumprir esses propósitos:

O coração do homem traça o seu caminho, mas o SENHOR lhe dirige os passos. (Pv 16.9; cf. 16.1; 19.21)

De acordo com muitas passagens das Escrituras, Deus controla as nossas decisões e atitudes livres, predizendo frequentemente essas decisões muito antes de elas ocorrerem. Ele declarou que, quando os israelitas subissem a Jerusalém para as festas anuais, as nações inimigas não cobiçariam a sua terra (Ex 34.24). Deus estava afirmando que controlaria a mente e o coração daqueles pagãos para que, naquelas ocasiões, não causassem problemas ao povo de Israel.

Quando Gideão liderou o seu pequeno exército contra o acampamento midianita, "o SENHOR tornou a espada de um contra o outro, e isto em todo o arraial" (Jz 7.22). Durante o exílio, Deus "fez" um chefe oficial babilônico "conceder a Daniel misericórdia e compreensão" (Dn 1.9). Depois do exílio, o Senhor "os tinha alegrado, mudando o coração do rei da Assíria a favor deles (Israel)" (Ed 6.22).

No momento da crucificação de Jesus, os soldados decidiram livremente lançar sortes sobre a túnica de Jesus, em vez de rasgá-la. No entanto, Deus havia predestinado essa decisão: para se cumprir a Escritura: Repartiram entre si as minhas vestes e sobre a minha túnica lançaram sortes. (Jo 19.24, citando SI 22.18; cf. Jo 19.31-37).

O argumento de João foi que Deus não só sabia antecipadamente o que iria acontecer, mas, mais propriamente, que o acontecimento se deu para que as Escrituras pudessem ser cumpridas. De quem era a intenção de cumprir a Escritura por meio desse acontecimento? A causa primária da decisão dos soldados não foi a intenção deles, mas a intenção de Deus.


Os evangelhos afirmam, repetidas vezes, que certas coisas aconteceram para que as Escrituras se cumprissem. Muitos desses acontecimentos envolviam decisões livres de seres humanos (veja p. ex., Mt 1.20-23; 2.14,15, 22,23; 4.12-16). Em alguns casos, seres humanos (tais como o próprio Jesus em 4.12-16) podem ter tido a intenção consciente de cumprir as Escrituras. Em outros casos, eles não tinham essa intenção ou nem mesmo sabiam que estavam cumprindo as Escrituras (p. ex., Mt 21.1 -5; 26.55,56; At 13.27-29). Em todo caso, as Escrituras devem ser cumpridas (Mc 14.49).

O quadro que é formado por essa grande quantidade de passagens é que o propósito de Deus está por trás das livres decisões dos seres humanos. Frequentemente, e por vezes muito antes de o acontecimento ocorrer, Deus nos diz o que um ser humano decidirá livremente o que vai fazer.


O ponto aqui não é meramente que Deus tem conhecimento antecipado de um acontecimento, mas que ele está cumprindo o seu próprio propósito por meio dele. Esse propósito divino transmite uma certa necessidade (Gr. dei, cf. Mt 16.21; 24.6; Mc 8.31; 9.11; 13.7,10,14; Lc 9.22; 17.25; 24.26) à decisão humana para que realize o acontecimento predito.''


Fonte: Josemar Bessa


quinta-feira, 2 de agosto de 2012

A CONFISSÃO DO PECADOR


Por D. M. Lloyd-Jones

Tem misericórdia de mim, ó Deus, segundo a tua benignidade; apaga as minhas transgressões, segundo a multidão das tuas misericórdias. Lava-me completamente da minha iniqüidade, e purifica-me do meu pecado. Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim. Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista, para que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares. Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.” 
 — Salmo 51:1-5

Normalmente é admitido que o Salmo cinqüenta e um talvez seja a exposição clássica no Velho Testamento sobre a questão do arrependimento. De fato, há um sentido em que se pode afirmar que talvez ele seja a exposição clássica sobre este assunto de arrependimento na Bíblia inteira. Ele é o registro da agonia da alma de Davi, o rei de Israel, após ter sido culpado de um crime particularmente terrível. Um pequeno sub-título na Versão Autorizada (Authorized Version) diz: “para o músico-mor, um Salmo de Davi, quando o profeta Nata veio a ele, após Davi ter possuído a Bate-Seba”. Noutras palavras, há um sentido em que não podemos compreender verdadeiramente este Salmo e seu ensino até que tenhamos em mente o pano de fundo que lhe deu existência.

É uma história muito desagradável. Todavia, devo lembrar-lhe dela porque a vida pode ser desagradável. Infelizmente, todos nós somos capazes de fazer coisas desagradáveis. A história em sua essência é esta: Davi era o rei de Israel,e neste momento particular no seu reinado, seus exércitos estavam ocupados numa guerra. O próprio Davi não estava com o exército; ele tinha permanecido em Jerusalém. É-nos dito que um dia aconteceu que ele estava assentado no terraço da sua casa, olhando, aparentemente distraído, à distância, quando viu uma linda mulher. A mulher era a esposa de um homem que estava combatendo com os exércitos de Davi contra o inimigo. Davi, tendo olhado, e gostado da mulher, cobiçou-a e ordenou que ela fosse trazida a ele. Ela veio e ele cometeu adultério com ela. Ele a seduziu. Então, para cobrir o seu pecado, ele comunicou com seu comandante-chefe, Joabe, e mandou dizer-lhe que enviasse para casa Urias, o heteu, o marido daquela mulher. Ele veio e teve uma entrevista com o rei. O rei, então, o despediu e o mandou para casa.

Mas Urias era um homem honrado e não foi para casa e para sua esposa. Ele sentiu que não deveria fazer isso quando os exércitos do rei estavam no campo de batalha e quando talvez o destino de Israel estivesse em perigo. Ele disse: “Não, não!!!... eu não posso fazer isso”, e ele dormiu na soleira da porta (do palácio). O rei ouviu isso e fez o pobre homem beber, numa tentativa de enviá-lo para sua casa. Contudo, novamente Urias recusou. Então Davi escreveu uma carta para Joabe e a enviou por mãos de Urias. Com efeito, ele disse: “eu quero ficar livre deste homem; você deve de uma forma ou de outra colocá-lo à frente da batalha”. Joabe executou a ordem. Organizou para que Urias, o heteu, e outros, fossem colocados à frente da batalha, onde a maioria dos homens valentes do exército inimigo estava presente. O pobre Urias foi morto. Desse modo, Davi obteve o que pretendia, foi satisfeito e tomou a mulher, Bate-Seba, a esposa de Urias, para ser uma de suas esposas. Tudo parecia perfeitamente bem. “...porém esta coisa que Davi fez pareceu mal aos olhos do Senhor” (2 Samuel 11:27).

Davi, entretanto, estava totalmente feliz, até que Deus lhe enviou o profeta Natã. Natã disse ao rei: “eu tenho algo triste a relatar a você. Havia dois homens em seu reino; um era um homem rico e tinha grande rebanho e uma abundância de ovelhas e bois; e havia outro homem, um homem muito pobre que tinha apenas uma cordeirinha. Ela era um tipo de animal de estimação para ele. Mas aconteceu que quando alguém fez uma visita para o grande homem rico, em vez de matar uma de suas próprias ovelhas, ele tomou a cordeirinha do pobre homem e a matou e preparou-a para seu hóspede. O proprietário pobre foi esmagado pela dor”. Davi levantou-se irado e declarou: “o homem que cometeu essa coisa tão monstruosa deve ser punido imediatamente!” Natã, então, interrompeu-o e disse: “tu és o homem!”, indicando com isso que ele tinha proferido uma parábola para lembrá-lo e lhe destacar aquilo que ele mesmo havia feito no caso de Urias, o heteu. Esse é o pano de fundo. Davi, subitamente, olha-o e é tomado por um sentimento de culpa e horror, e foi nessa condição que ele escreveu este Salmo cinqüenta e um. Aí está a história, aí o pano de fundo. Pois bem, espero estudar este Salmo com vocês, porque ele encaminha a nossa atenção de maneira bem patente e convincente para algumas das verdades básicas e fatos concernentes à nossa vida neste mundo. Ele esquadrinha especialmente o grande assunto da nossa salvação.

De acordo com a Bíblia, há certos passos que precisamos dar, necessariamente, antes que possamos conhecer a salvação de Deus em Jesus Cristo. Vamos à igreja domingo após domingo, porque estamos interessados na propagação do evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo. Minha única razão para me levantar no púlpito é que eu creio que aqui neste Livro está contido o caminho de Deus para a salvação da humanidade. Ele é a coisa principal que o mundo necessita hoje. Ele é a resposta para a necessidade do homem, e contudo, homens e mulheres o ignoram e o desprezam. Há muitos que estão interessados nele, e todavia eles não têm experimentado seu poder e graça salvadora. Por quê? Bem, eu simplesmente respondo que é devido eles não terem percebido que há certas coisas que devem acontecer antes que um homem possa experimentar a grande salvação que se encontra neste evangelho. Há certas coisas que devemos captar, que devemos agarrar, que devemos crer, e a primeira destas é o arrependimento. Essa é a razão pela qual estamos começando com este Salmo; devemos ser claros quanto a questão total do arrependimento.

Leiam o caso de qualquer convertido que podem encontrar na Bíblia, e vocês sempre perceberão que este elemento — o arrependimento — está presente. Leiam as vidas dos santos, leiam a história de homens que brilharam na Igreja de Deus em tempos passados, e verificarão que cada homem que realmente conheceu a experiência e o poder da graça de Deus em sua vida foi sempre um homem que demonstrou evidência de arrependimento. Portanto eu não hesito em fazer esta afirmação: sem arrependimento não há salvação. A necessidade de arrependimento é um daqueles absolutos a respeito dos quais a Bíblia não discute. Ela simplesmente o afirma. Ela simplesmente o postula. É impossível, eu afirmo, um homem se tornar cristão sem arrependimento; nenhum homem pode experimentar a salvação cristã até que conheça o que é arrepender-se. Por conseguinte, insisto que este é um assunto vital. João Batista quando iniciou seu ministério começou pregando o batismo de arrependimento para a remissão de pecados. Essa foi a primeira mensagem do primeiro pregador. Nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, sabemos pelo relato de Marcos, por Sua vez começou Seu ministério pregando que os homens deveriam arrepender-se. Arrependimento é absolutamente vital. Paulo também pregou arrependimento para com Deus e fé em nosso Senhor Jesus Cristo. Pedro pregou no dia de Pentecoste o primeiro sermão sob o patrocínio da Igreja Cristã, e quando ele terminou certas pessoas clamaram, dizendo: “Que devemos fazer?” “Arrependei-vos!” — disse Pedro. Sem arrependimento não há conhecimento de salvação, não há experiência de salvação. É um passo essencial. Este é o primeiro passo.

“Muito bem,” diz alguém, “O que você quer dizer quando afirma que devemos nos arrepender?” Respondo: este Salmo é uma exposição clássica sobre todo o assunto e doutrina do arrependimento. Neste primeiro estudo, quero apenas tratar de um aspecto e de um passo daquilo que considero o primeiro passo no arrependimento. É convicção do pecado, ou, se vocês preferirem, é a confissão de nossa pecaminosidade. Se se importarem em dar um título a este sermão, poderiam dizer que iremos tratar da confissão do pecador, nossa convicção de pecado e a confissão de nossa pecaminosidade.

Aqui, novamente, é algo que não hesito em descrever como um absoluto essencial. É devido os homens não perceberem o ensino bíblico concernente ao pecado que eles falham em compreender muitas outras coisas que estão presentes no evangelho cristão. Há tantas pessoas hoje que afirmam não ver a necessidade da encarnação; que não compreendem tudo o que se diz a respeito do Filho de Deus precisar descer para a terra; elas não entendem todo este falar a respeito de milagres e o sobrenatural; que não compreendem esta idéia da expiação e termos tais como justificação, santificação e o novo nascimento. Elas afirmam que não compreendem por que tudo isso parece ser necessário. Argumentariam da seguinte maneira: “Não seria na Igreja que todas essas teorias têm sido desenvolvidas, essas idéias puramente abstratas? Não seriam essas as coisas que tem excitado as mentes dos teólogos? O que elas têm a fazer conosco, e onde está a relevância prática delas?” Eu gostaria de salientar que pessoas que falam assim, o fazem porque não tem entendido a verdade acerca do pecado. Elas não percebem o verdadeiro significado do ensino bíblico a respeito do pecado. Não percebem que elas mesmas são pecadoras. Mas a Bíblia, em veemente contraste, insiste constantemente sobre isto do começo ao fim. Na verdade, eu colocaria o desafio da Bíblia ao mundo moderno nesta forma: ela nos afirma que a vida do homem, seja individual ou coletivamente, simplesmente não pode ser compreendida à parte da doutrina do pecado. Aqui nós estamos neste mundo moderno e complicado; estamos conscientes que alguma coisa está errada, e a pergunta é: “O que está errado?” Os políticos parecem não ser capazes de resolver os nossos problemas. Os filósofos estão fazendo perguntas, porém parece que eles não podem respondê-las. Todos os nossos esforços não conseguem colocar o mundo em ordem. A Bíblia diz: “Vocês estão ignorando a única coisa que é a chave para a situação! É o pecado. Eis a causa da angústia dos indivíduos, dos relacionamentos humanos mais íntimos, dos relacionamentos internacionais em toda parte. Aí está o problema”.

A Bíblia enfatiza isso em todo lugar, e de uma maneira admiravelmente honesta. Para mim, isso realmente é uma das coisas mais extraordinárias, mais fascinantes acerca deste Livro. Ele não encobre nada. Não posso entender o homem que não crê neste Livro como o Livro de Deus. Ele é muito honesto. Ele não procura ocultar as faltas de seus maiores heróis. As Escrituras não tentam construir uma grande imagem de uma série de heróis sem defeito. A mitologia faz isso e a humanidade normalmente faz o mesmo. Mas a Bíblia nunca o faz. Ela mostra os homens em suas fraquezas tanto quanto em sua força. E ela o faz por uma única razão — seu interesse principal não está nestes homens,absolutamente, porém na verdade de Deus. Quero que vocês vejam que a idéia comum de que os cristãos reivindicam ser melhores que as outras pessoas, é uma total caricatura da posição cristã. Ao Invés disso, a posição cristã é, segundo creio, que estou total e absolutamente perdido sem a graça de Deus. Eu sou o que sou pela graça de Deus — essa é a afirmação bíblica. O argumento da Bíblia é que a única esperança para o homem está no evangelho e na graça de Deus. Este é um evangelho para pecadores. Há um sentido em que ele nada tem a dizer a um homem, até que esse veja a si mesmo como um pecador. Noutras palavras, a finalidade de suas afirmações ao homem, é fazê-lo ver que é pecador. A Bíblia nada tem a dizer a um homem que não está arrependido. Sua primeira palavra é um chamado ao arrependimento. Dessa forma, ela trata desta terrível doutrina do pecado.

Seu argumento a respeito do pecado pode ser colocado da seguinte forma: o pecado é um terrível poder maligno, o pecado é tão terrível, uma coisa tão poderosa, que leva a todos nós para baixo, pois todo homem que já viveu neste mundo, se tornou vítima dele. A Bíblia nos diz que o poder do pecado é tão grande e terrível como isso — que mesmo um homem admirável e maravilhoso como Davi, o rei de Israel, pode cair no caminho que eu já descrevi. “Ora,” diz a Bíblia, “até que você perceba, amigo, que está enfrentando um poder como esse, você não terá começado a pensar corretamente. Se você não reconhecer que, todo o tempo em que estiver nesta vida e neste mundo, haverá este terrível poder infernal dentro de você, ao seu redor e sobre você, então será um mero neófito nestes assuntos! O fato é que aqui neste mundo há principados e potestades, dominadores deste mundo tenebroso, forças espirituais do mal nas regiões celestes, tentando, perseguindo e oprimindo você”.Essa é a doutrina bíblica do pecado. Essa é a terrível coisa que está revelada para nós neste Salmo. O primeiro passo é que o homem tem que reconhecer e confessar sua pecaminosidade.

Realmente, este Salmo cinqüenta e um é o que podem denominar, se quiserem, “Uma oração de um desviado”. Foi a oração de um homem que havia crido em Deus e experimentado a graciosa direção divina. Trata-se de um homem que caiu, embora conhecesse a verdade. Mas isso não faz nenhuma diferença. O que Davi afirma aqui acerca do pecado é sempre verdadeiro a respeito do pecado, seja ele o pecado de um crente ou de um incrédulo. O pecado nunca muda o seu caráter, e, portanto, o que Davi diz acerca do pecado é algo que será sempre uma verdade universal a respeito do pecado. Aqui, então, constatamos os passos e os estágios através dos quais um homem inevitavelmente passa quando se torna convencido e convicto do seu pecado. Eu simplesmente quero enumerá-los e sublinhá-los.

O primeiro passo é este: o homem chega ao conhecimento e reconhecimento do fato de que ele tem cometido pecado. Ouçam a Davi no versículo 3: “Porque eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim”. A primeira coisa, então, que acontece a um homem quando está convencido e convicto do pecado, é que ele encara o seu pecado e, na verdade, olha de uma maneira honesta ao que tem feito. Este relato todo nos mostra que foi exatamente isso que Davi não fez. Não haveria nisso algo quase inacreditável, que um homem pudesse fazer as coisas que fez e, no entanto, não encará-las? Certamente,Davi deve ter sentido que estava fazendo algo errado; todavia, ele o fez! Na verdade, ele nunca assumiu o fato do delito, e continuou recusando a fazê-lo. E, tendo feito estas coisas terríveis, Davi ainda não as teria assumido, se Deus não tivesse enviado o profeta Natã a ele, fazendo com que Davi reconhecesse o seu pecado, dando-lhe detalhes do mesmo, como tendo acontecido de maneira diferente. Dessa forma, Davi o reconheceu, e foi humilhado até ao pó. Por conseguinte, escreveu este Salmo cinqüenta e um. Esse é sempre o primeiro passo. Devemos parar e pensar, devemos parar por um momento e examinar-nos de frente, encarar a vida que temos vivido, o que fizemos, e o que estamos fazendo.

Reconheço que isso é muito desagradável, e as pessoas não gostam de um evangelho que diz coisas como essas. No entanto, se queremos conhecer a salvação de Deus, temos que nos arrepender, e o primeiro passo é a convicção de pecado, e a maneira inicial para alguém se tornar convicto de pecado é parar e olhar para si mesmo. Acaso isso não é espantoso, pergunto novamente? Como poderia Davi ter feito as coisas que fez sem assumi-las? Eis aí todas as coisas que ele fez; mesmo assim ele continua a fazê-las. Como pode ele fazer isso? A única maneira de continuar em tal posição é: recusar-se a assumir o que você está fazendo e, não parar para pensar. E por isso que eu não denuncio a tão conhecida mania por prazer, que é apenas uma tentativa da parte de muitas pessoas de fugir desta autoconfrontação. E desagradável ter que gastar uma noite consigo mesmo e perguntar: “Que tipo de vida eu estou vivendo? Quais são as coisas que eu afago em minha imaginação e em minha mente?” Todavia, isso é absolutamente essencial; temos que parar e encarar a nós mesmos, e a vida que estamos vivendo. Todos nós somos incrivelmente semelhantes a Davi. Quão fácil é desculpar coisas em nós mesmos, passar por cima delas e não dar valor a elas. Contudo, ainda somos propensos a denunciar com fúria as mesmas coisas quando as vemos em outros, ou quando um caso idêntico está diante de nós. Isso faz parte da natureza humana. Isso é verdadeiro com respeito a todos nós como resultado da Queda e do pecado. Projetamos todos esses métodos para poder fugir de nós mesmos.

Deixem-me fazer uma simples pergunta neste ponto: “Amigo, você tem encarado a si mesmo?” Esqueça as outras pessoas. Levante um espelho diante de si mesmo, olhe através dele para a sua vida, olhe para as coisas que você tem pensado, feito e dito, olhe para o tipo de vida que você tem levado. Está satisfeito com ela? Você aprova na vida das outras pessoas aquelas coisas que tem feito na sua própria vida? Você as aprovaria como sendo sem defeito? O primeiro chamado de Deus ao homem, é para que ele seja honesto, pare de argumentar, e encare a si mesmo. Que o homem examine-se a si mesmo. Sim, deixem-me ir ainda mais longe, paremos de argumentar sobre religião e teologia, e simplesmente olhemos para nós mesmos, honesta e sinceramente. Esse é o primeiro passo. “Eu conheço as minhas transgressões, e o meu pecado está sempre diante de mim.” Vocês o têm enfrentado, têm realmente examinado a si mesmos e olhado para dentro dos seus próprios corações? Não há esperança para um homem que não faz isso, e a verdade a respeito do mundo moderno é que as pessoas estão fugindo exatamente disso. As pessoas estão lotando cinemas, lendo novelas — qualquer coisa para preencher suas vidas e manter a autoconfrontação longe dos seus pensamentos. Eu declaro que você tem que lutar pela sua vida e tem que lutar pela sua alma. O mundo fará qualquer coisa para impedir que você encare a si mesmo. Meu querido amigo, deixe-me apelar a você: olhe a si mesmo. Esqueça as outras pessoas e as demais coisas. Esse é o passo inicial rumo ao conhecimento de Deus e à experiência de Sua gloriosa salvação.

Todavia, deixem-me levá-los ao segundo passo. O segundo passo é um reconhecimento exato do caráter ou natureza do que nós temos feito. Isso é perfeitamente colocado aqui em três palavras. A primeira é a palavra “transgressão”, a segunda é “iniqüidade”, e “pecado” é a terceira. Agora, deixem-me dizer um pouco sobre essas três palavras.
O que significa “transgressão”? Significa rebelião, significa a revolta da vontade contra a autoridade, e especialmente contra uma pessoa de autoridade. Esse é o significado de transgressão. “Apaga as minhas transgressões.” Noutras palavras, Davi admite que ele transgrediu, admite que foi rebelde. Ele se rebelou contra uma autoridade, contra alguém. Sua própria vontade se levantou dentro dele, e ele se manifestou. Ele foi governado pelo desejo e se permitiu ser influenciado pela concupiscência. Transgressão implica num desejo de fazer a própria vontade, um desejo de fazer o que queremos fazer, o que nós gostamos de fazer. Isso envolve uma escolha deliberada, envolve um ato de contestação ativa. Sempre significa que fazemos alguma coisa que nossa própria consciência nos diz ser errada. Isso é um ato voluntário e deliberado de desobediência, uma violação de autoridade — esse é o significado de transgressão. Todo homem que se arrepende, percebe que é culpado disso. Ele está disposto a admitir: “Sim, eu fiz isso, embora soubesse que era errado! Eu sabia que a voz dentro de mim, minha consciência, dizia não, mas eu o fazia. Eu fui um rebelde, fiz isso deliberadamente!”

“Iniqüidade”, o que significa? Bem, iniqüidade significa que um ato está torcido ou que está alterado. Iniqüidade significa perversão, e isso foi óbvio no caso de Davi. “Lava-me completamente da minha iniqüidade! — a coisa impura, esse ato terrível. O que havia em mim que me levou a fazer aquilo? Que distorção, que perversão! Quão pervertido eu devia estar para fazer aquilo!” Vocês se lembram o que Davi fez. Não preciso me demorar enfatizando o pecado, sua conduta distorcida, e a perversão disso tudo. E, quanto a isso, quão verdadeiro é referente a cada ato do qual somos culpados. Vocês e eu não podemos ser culpados de assassinato, graças a Deus! Não somos culpados de algumas das outras coisas das quais Davi foi culpado. Mas eu peço que cada um se examine; acaso não vê que muitas coisas que tem feito são distorcidas e pervertidas? Você não vê que muitas de suas ações na vida estão erradas? Ciúme, inveja e malícia — que distorção horrível! Desejar que o mal aconteça a outrem, que alguém não seja honrado — pensamentos maus, corrupção, distorção, torpeza, impureza — “iniqüidade”! E todos nós somos culpados de iniqüidade. Porventura existe alguém que negaria a existência de tal distorção nele, e que tantas das suas ações tiveram esta horrível distorção e perversão nelas?

Finalmente, a respeito da última palavra, “pecado”. O que significa pecado? Pecado significa errar o alvo, e essa é uma maneira muito boa de defini-lo. O pensamento que ele transmite é este: que não estamos vivendo conforme deveríamos viver. Eis aí um homem apontando para um alvo; eis aí a sua meta. Ele atira, porém erra o alvo. Ele não acertou na mosca. Isso significa que nós não somos o que deveríamos ser, que estamos “fora de linha”. Isso é o que pecado sempre significa. Ele indica que um homem está vivendo uma vida que não devia viver. Mostra que o homem não está andando na vereda que Deus traçou para ele. O homem não está indo diretamente para a frente. Ele não mantém um padrão de retidão. Há um movimento para trás e outro para a frente, há uma falta de retidão nele. Eu não preciso insistir nesses pontos. Sei que cada pessoa nesta congregação deve reconhecer que ele ou ela é culpado dessas três coisas — transgressão (ou rebelião), iniqüidade (ou perversão, distorção, ações erradas) e pecado (isto é, errar o alvo, não chegar lá, não sermos o que devemos ser, o que pensamos ser, indo aqui, ali e em qualquer lugar em vez de irmos onde deveríamos estar indo — diretamente para a frente). O segundo passo sobre convicção de pecado e sobre confissão de pecado é que o homem reconhece que esse é o caráter da sua vida e ações.

O passo número três é que o homem reconhece e confessa que tudo isso é feito contra Deus e diante de Deus. “Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista.” “Certamente”, diz alguém, “isso tem que estar errado!” Davi deve ter dito: “Contra Bate-Seba, contra Urias, contra os homens que foram mortos naquela batalha, contra Israel e meu povo eu tenho pecado”. Mas ele disse: “Contra ti, contra ti somente...”. Ah, ele está totalmente certo! Ele não negou que tinha pecado contra os outros, contudo aqui está indo um passo além disso. Reconhece que suas ações não são simplesmente ações em si e de si mesmas. Ele percebe que elas não apenas afetaram e envolveram outras pessoas, mas a essência real é que ele pecou contra Deus. Então, aqui está a essencial diferença entre remorso e arrependimento. Um homem que sente remorso é alguém que reconhece o seu erro, porém não tem se arrependido até que perceba que pecou contra Deus.

Por que ele sentiria assim? Deixem-me tentar responder a pergunta da seguinte maneira. Pecado, vejam vocês, significa uma violação do que Deus intentou, e do que Deus pretendeu que o homem fosse. Deixem-me colocar isso, de uma forma preliminar, da seguinte forma: quando um homem peca, ele não está somente fazendo certas coisas que não deveria fazer; está pecando contra a natureza humana, está frustrando-a. Portanto, ele está pecando, contra a humanidade, e por causa disso, está pecando contra Deus que criou o homem. Deus criou o homem perfeito, e Deus intentou que o homem vivesse uma vida perfeita. Ele deu ao homem a possibilidade de viver assim, e quando um homem peca, ele desagrada a Deus. “Contra ti, contra ti somente pequei.” Eu tenho violado o que Deus tencionou que o homem fosse. Estou torcendo e pervertendo a criação de Deus. Toda vez que eu peco, estou violando a santa lei de Deus. Os dez mandamentos, a lei moral, a idéia comum de decência na natureza humana — tudo isso procede de Deus. Vejam só, todos nós sabemos disso, e a cada momento eu sou culpado de transgressão, ou iniqüidade, ou pecado; estou violando a santa lei de Deus, e o plano estabelecido para a vida do homem. De fato, eu também estou violando, como lhes tenho lembrado, minha consciência dentro de mim. A consciência foi colocada por Deus em mim. Não fui eu que a coloquei. Quão freqüentemente temos desejado não ter uma consciência! Mas ela existe. Vocês conhecem aquela voz interior que fala e lhes diz que certa coisa não deve ser feita. Se fizerem essa coisa, estarão violando o preceito de Deus. Isso também é pecar contra Deus, porque significa que fazemos todas essas coisas a despeito da Sua bondade para conosco. Penso que essa foi a coisa que quebrantou o coração de Davi mais do que qualquer outra. Deus havia sido tão bom para com ele. Ele era simplesmente um jovem pastor de ovelhas e Deus fez dele rei deste grande reino e lhe concedeu abundantes bênçãos. Davi, no entanto, confessou: “Eu tenho feito essa coisa terrível”. Ele disse: “Contra ti, contra ti somente pequei”.

Meu amigo, Deus lhe tem dado o dom da vida. Você não trouxe a si mesmo para esse mundo, e você é uma personalidade única. Ele tem derramado Suas bênçãos sobre você. Ele colocou você numa família, envolvendo você de amor. Ele tem dado a você alimentação e abrigo. Ele poderia ter-lhe negado tudo isso. Pense na bondade de Deus que tem sido concedida a você de diferentes maneiras! E nós ainda O desprezamos! Pecamos contra Ele e contra Sua maravilhosa bondade, benignidade e amor para conosco!

Qual é o próximo passo? O próximo passo é que o homem descobri que não tem absolutamente nenhuma desculpa, nenhum direito. “Contra ti, contra ti somente pequei, e fiz o que é mal à tua vista, para que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares.” Noutras palavras, Davi está dizendo a Deus: “Eu não tenho desculpa nenhuma. Eu não tenho direito. Nada há a ser dito por mim. Não há argumento para o que eu tenho feito. A coisa toda foi o resultado da total teimosia. Estou inteiramente errado. Nada tenho para pleitear a favor duma mitigação”. Quero enfatizar isso. Afirmo que isso é uma parte absolutamente essencial do arrependimento e da convicção de pecado. Por conseguinte, insisto com vocês para que examinem a si mesmos e suas ações. Podem justificar tudo o que têm feito? Vocês realmente podem pleitear uma mitigação? Deixem-me assumir a posição de Natã, o profeta. O que sucederia se eu me levantasse neste púlpito e descrevesse sua vida para vocês mediante uma parábola acerca de outra pessoa? Vocês entenderiam isso? Devemos examinar a nós mesmos a esse respeito. Deixem-me falar francamente, colocando a situação da seguinte forma: enquanto estiverem na posição de tentarem justificar-se, nunca terão se arrependido. Enquanto estiverem se apegando a qualquer tentativa de auto-justificação e justiça própria, afirmo que não terão se arrependido. Certamente, o homem que está arrependido é aquele que, com Davi, diz: “Não há uma simples desculpa.Eu vejo isso claramente. Eu não tenho justificação.As coisas que vejo em minha vida — eu as odeio, não tenho o direito de fazê-las, eu as faço deliberadamente, sei que estou errado. Admito isso! Eu francamente confesso isso — “para que sejas justificado quando falares, e puro quando julgares”. Acaso você sente, meu amigo, que Deus é um tanto duro quando Ele o condena? Você sente que Deus estaria sendo injusto se você a final viesse a se achar no inferno? Se você pensa assim, então ainda não se arrependeu. Eu reafirmo que o teste do arrependimento é este: que um homem tendo olhado a si mesmo, e o seu próprio coração e vida, diz para ele mesmo: “eu nada mereço senão o inferno, e se Deus me enviar para lá não tenho uma simples reclamação a fazer. Não mereço outra coisa!” Essa é uma parte essencial do arrependimento, e sem arrependimento não há salvação. O homem, eu afirmo, que se sente convicto do pecado, é o homem que segue esses passos. E isso me leva ao último passo.

O último passo é que o homem percebe e reconhece que sua natureza é essencialmente má. “Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.” Vocês vêem os passos? A primeira coisa é que o homem para e assume os fatos, ele olha para si mesmo. Então, no segundo passo, ele reconhece as ações das quais tem sido culpado e as admite como sendo errôneas em três aspectos. E então ele diz: “Sim, mas isso envolve Deus, e eu tenho pecado contra Deus”. O próximo passo vem quando ele admite: “Eu não tenho nenhum direito ou desculpa”. Mas, então ele pergunta a si mesmo: “O que me fez praticar isso? O que me levou àquilo? O que há em mim que me torna capaz de todas essas coisas — ciúme, inveja, ódio, malícia, avareza, desejo, concupiscência, paixão?” Por último, ele volta para si, observa isso, e declara: “Minha natureza deve ser corrupta, meu coração deve ser mau! Não é o mundo fora de mim, é algo dentro de mim que está corrompido!” Noutras palavras, o último passo quanto à convicção de pecado é que o homem sobe de uma conscientização dos seus pecados para uma conscientização do pecado e de sua total desvalia.

O último passo é o que Paulo descreveu no sétimo capítulo da Epístola aos Romanos: “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum... Miserável homem que eu sou! quem me livrará do corpo desta morte?” (versículos 18 e 24). Ou seja, ele declara: “dentro de mim eu sou corrompido, eu sou impuro, meu coração é sujo. Não é simplesmente que eu faço as coisas que eu não deveria fazer, o problema está em mim mesmo. O problema é que eu desejo fazer essas coisas, eu quero fazê-las. Por quê? Porque há algo em mim que atende à atração do mal. E isso o que me aborrece. Eu sou capaz disso e gosto disso. É o meu coração, não é o mundo”. Como Shakespeare o colocou: “O erro, querido Brutus, não está em nossas estrelas Mas em nós mesmos, que somos inferiores.”

“Eis que em iniqüidade fui formado, e em pecado me concebeu minha mãe.” A partir do momento do meu nascimento neste mundo, há uma tendência em mim para o mal; há algo torcido e pervertido. Isso está em mim; faz parte do meu ser e natureza. Esses, então, são os passos na convicção de pecado e na confissão de pecado.

Você percebe a verdade do que tenho tentado dizer, será que não quer clamar como Davi: “Tem misericórdia de mim, ó Deus”? Essa é a coisa certa, a única coisa a fazer, meu amigo. Se você se vê como alguém que tem pecado, então, eu o imploro, corra para Deus, lance-se sobre a Sua misericórdia. Você não fará isso em vão. Descobrirá que Ele fez total provisão para você. Ele enviou o Filho do Seu amor a este mundo justamente por você, para morrer pelo seu pecado no monte do Calvário. Seu pecado foi punido, Ele o cancelou na cruz, Ele purificará você e fará você alvo como a neve, Ele o dará todas as coisas que necessitar. Corra para Ele. Se você tem visto sua necessidade, fará isso. O homem que vê isso, como Davi viu, imediatamente clama: “Tem misericórdia de mim, ó Deus... purifica-me”. Faça o mesmo e sua oração será gloriosamente respondida, e você experimentará a alegria da grande salvação de Deus.

Fonte: O Clamor de um Desviado, Estudos sobre o Salmo 51 - D. M. Lloyd-Jones. PES - Publicações Evangélicas Selecionadas



QUE É O HOMEM?

Por Martyn Lloyd-Jones

Que é o homem? Qualquer consideração autên­tica sobre o homem e seus problemas, no mundo moderno, deveria responder a essa pergunta. Se a idéia básica sobre o que é o homem estiver errada, então, necessariamente, também estará errada a idéia a respeito dos seus problemas e do que pode ser feito em favor dele. Assim, já de início vemos que a idéia moderna e popular sobre o homem e sua natureza afasta-se radicalmente do ponto de vista bíblico e cristão, quase universalmente crido e aceito até cerca dos últimos cem anos.

A idéia moderna acerca do homem talvez poderia ser melhor descrita como o culto da auto-expressão, sendo um conceito que tem permeado e influenciado quase cada aspecto da vida. Esse conceito é responsável pelos aspectos mais essenciais e característicos da con­duta moderna. É, por exemplo, a verdadeira explicação da última e calamitosa guerra mundial. Esse culto da auto-expressão, manifestando-se sob a forma da filosofia nazista, foi um importante fator que levou a Alemanha a mergulhar o mundo naquele horror.

Trata-se de um conceito alicerçado sobre a idéia de que a pessoa tem o direito de expressar-se, mesmo que seja às custas do sofrimento alheio, e que aquilo que alguém gosta torna-se uma necessidade legítima. Essa mesma idéia se manifesta no campo dos negócios, onde o conceito de promoção de vendas se baseia prin­cipalmente sobre essa filosofia de auto-expressão. Também pode ser percebida no campo da educação, onde o conceito de disciplina e antigo programa de ensinar às crianças as três instruções básicas — leitura, escrita e aritmética — não são mais popularmente aceitos. O resultado da atual noção popular de que a finalidade da educação consiste, primordialmente, em treinar a criança a expressar-se pode ser visto por toda a parte, tanto no colapso do controle paterno como no aumento da delinqüência juvenil.

Todavia, dentro de nossos propósitos, nos ateremos àquilo que essa moderna filosofia se expressa, particularmente no campo da religião e no mundo da alma. Sob a influência desse conceito popular, neste século, tem havido profunda e radical modificação na atitude das pessoas comuns, acerca de toda a questão religiosa. Até ao surgimento do conceito da auto-expressão, os homens se contentavam em permanecer em atitude mais ou menos negativa no tocante às suas más ações. Alguns até admitiam livremente que tinham cometido pecado, e que não havia justificativa. Outros procuravam defender-se dizendo que os padrões religiosos eram por demais elevados, que suas regras eram por demais severas. Ainda outros, como uma capa para os seus pecados, destacavam exageradamente o amor de Deus e a sua prontidão em perdoar. E outros falavam sobre o pecado em termos de virilidade, apresentando-se como homens que tinham rompido certas restrições e algemas.

Mas, a despeito das inúmeras variações, a atitude central, comum a todas essas posições, era a de admitir a existência do pecado. Todas aquelas pessoas estavam, de uma maneira ou de outra, defendendo-se das suas próprias consciências, embora de maneira contrária à opinião da igreja e da Bíblia. A súmula do desejo delas era permanecerem intocadas e não-condenadas. Ainda que algumas vezes tal desejo se expressasse, conforme vimos, na forma de um ataque contra os crentes, como se neles houvesse falta de vigor, como se fossem pessoas de mentalidades fechadas. Aqueles descontentes não diziam — e nem ansiavam dizer — que os crentes estavam errados, embora desejassem que, eventual­mente, assim ficasse provado. O seu maior desejo era o de se protegerem, de uma maneira ou de outra, da acusação de estarem afastados de Deus. O pecado, de modo geral, parecia vergonhoso. E embora, vez por outra, procurassem se defender de maneira agressiva, a atitude era totalmente negativa.

A atual perspectiva, que se baseia nesse culto da auto-expressão é, por outro lado, algo inteiramente positivo. Ao invés de serem defensivos, os métodos dessa perspectiva são de caráter ofensivo. Ao invés de resistirem ao ataque da religião, esses métodos atacam a religião cristã e todos os seus seguidores. Não satisfeita em justificar os seus próprios caminhos, essa perspectiva recomenda a si mesma como a única forma digna de vida. Declara que a posição sobre o pecado, ensinada pela igreja, com base na Bíblia, que por tanto tempo vem controlando o pensamento do mundo, não somente é inexata, mas também pervertida; e que, quando a Bíblia apela ao homem para que se abstenha de certos atos, por amor à sua própria alma, ela está sendo na realidade o pior inimigo do homem.

Todas aquelas antigas palavras acerca do pecado, dizem os auto-expressionistas, são completamente tolas, pois induzem à auto-repressão, o que, segundo afian­çam, é o único pecado. O que se costumava chamar de pecado é apenas a expressão do próprio "eu", a maior e mais vital possessão que o homem tem. Não pecar, de acordo com o antigo significado do termo, seria fazer violência ao maior dom que o homem possui. Portanto, tais pessoas pedem a abolição do vocábulo "pecado" em suas mais básicas associações.

Segundo eles, o homem é uma criatura que possui vários poderes, faculdades e instintos, e o seu bem mais elevado se acha no exercício dessas faculdades. E afirmam ser uma perversão não-saudável, da parte dos crentes, a acusação de iniqüidade e desgraça para a sociedade aquelas demonstrações de auto-expressão. Insistem na retidão do que é natural e instintivo. Deploram aquilo que chamam de trágico espetáculo da humanidade, impedida de obter seu maior bem, por aderir às advertências da Bíblia, da igreja e dos santos.

Os defensores dessa doutrina não hesitam em seguir essa lógica às suas conseqüências extremas, asseverando que a pessoa por ainda acreditar no pecado, à maneira antiga, e que, por conseguinte, tenta disciplinar e controlar a sua vida, é um pervertido, um psicopata, o qual não somente peca contra si mesmo e contra seu próprio verdadeiro destino, mas também contra a humanidade de modo geral. E assim, de acordo com esse ponto de vista, os maiores pecadores na vida têm sido exatamente aqueles a quem as diversas igrejas têm canonizado como seus maiores santos.

Esse é o conceito de vida, abraçado por milhões de pessoas em todos os países, em nossa época. Também é esse o ponto de vista que atrai a outros milhões, que só são impedidos de aceitá-lo plenamente e de se entregarem a ele, não porque vejam claramente que é errôneo, mas antes; por serem restringidos por um espírito geral de temor e pelas tradições.

Podemos considerar melhor esse ponto de vista humano sobre a vida e demonstrar sua total falácia, contrastando-o com o ponto de vista divino, estabele­cido na Bíblia. Os ensinamentos de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo bradam abertamente contra o pecado. Declarou ele: "Portanto, se a tua mão ou o teu pé te faz tropeçar, corta-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno. Se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida com um só dos teus olhos do que, tendo dois, seres lançado no inferno de fogo" (Mt 18.8,9).

Ora, nesse texto somos relembrados acerca do modo como cada aspecto imaginável da vida e dos homens é invariavelmente tratado nas Escrituras. O homem moderno vive a lisonjear-se, sugerindo a si próprio que algumas de suas idéias são inteiramente novas. Porém, uma vez mais, encontramos uma ilus­tração de um conceito que se ufana de modernidade, sendo tratado completa e exaustivamente na Bíblia.

A primeira crítica que fazemos a esse moderno culto da auto-expressão é que ele não consegue perceber a verdadeira natureza do próprio "eu". Fala muito em fornecer meios de expressão ao "eu"; no entanto, facilmente podemos mostrar que suas próprias idéias atinentes ao "eu" são falsas e violentam a verdadeira natureza humana. É óbvio que, antes da expressão, deve vir a definição; e, conforme esperamos demonstrar, a nossa objeção não é quanto à idéia da auto-expressão, mas antes, quanto ao ponto de vista inteiramente falso acerca do próprio "eu", que muitos têm aceitado atualmente. A resposta dada pelo evangelho a esse culto moderno não é uma doutrina de repressão, mas antes, é uma chamada à percepção da verdadeira natureza do "eu". Ora, o choque entre o ponto de vista bíblico e o de homens modernos se destaca claramente nas linhas acima citadas, especial­mente na ênfase de Cristo ao usar a segunda pessoa. Se um dos teus olhos te faz tropeçar... lança-o fora de ti..." Permitam-me apresentar o assunto na forma de duas declarações positivas.

O ponto de vista moderno não estabelece distinção entre o próprio "eu" e os vários fatores que tendem a influenciá-lo, ou seja, os diversos fatores usados pelo "eu", a fim de poder exprimir-se. Por outro lado, nosso Senhor traça essa distinção bem clara e definidamente, ao salientar a segunda pessoa. O fato que Cristo assim fez pode ser a verdadeira causa de toda a confusão moderna. A posição que se tornou tão popular hoje em dia tende por reputar o homem como mero agregado de vários poderes e forças que, em sua interação, produzem um certo resultado final. Por si mesmo, o homem é apenas o resultado desses poderes e forças e de seus efeitos.

E quais são essas forças? Bem, há a própria estrutura física do corpo humano e, especialmente, suas várias glândulas, notavelmente a tireóide, a pituitária e as glândulas endócrinas supra-renais, que tendem a controlar algumas das funções mais vitais. Normal­mente, essas glândulas funcionam em perfeito equilíbrio, com alguma variação para mais ou para menos; mas, há inúmeras variações possíveis; e, conforme uma ou outra tende a predominar, o próprio "eu", junto com a personalidade, varia, segundo somos informados. É bem provável que já tenhamos lido afirmativas assegurando que todas as grandes personagens da história podem ser interpretadas em termos de tais leves modificações, nas proporções relativas dessas diversas glândulas, que se achavam em seus corpos. Assevera-se que, dessa maneira, Shakespeare e Beethoven podem ser facilmente explicados. De conformidade com essa posição, pois, o homem não passa de um mecanismo biológico; e o seu próprio "eu", a sua personalidade, não passa de puro resultado da inter-relação de forças biológicas.

Há uma outra teoria, intimamente ligada a essa, que tende a pensar sobre o homem em termos daquilo que chamamos de instintos. De acordo com esse ponto de vista, o homem, ou o próprio "eu", é determinado pela interação dos diversos instintos ou pelo predomínio de qualquer um dentre os vários instintos, tais como o instinto gregário, o instinto de proteção, o instinto do medo, o instinto sexual, o instinto da fome, etc. A personalidade essencial do homem, o seu próprio "eu", é considerada apenas como o produto dessas forças.

Na análise do "eu", uma outra teoria dá grande importância às tradições, ao meio ambiente e à forma de criação. É nessa altura que aparecem todos os elementos, como raça, sangue e nacionalidade, além de todos os fatores que podem ser atribuídos ao meio social e ao ambiente da pessoa.

Também há uma outra posição, que procura explicar o próprio "eu" segundo termos mais ou menos geográficos e climáticos. Segundo esse ponto de vista, a teologia de um homem como João Calvino deve ser explicada exclusivamente em termos do fato que ele viveu na Suíça. As raças germânicas, que vivem no norte, são reputadas mais severas, mais inclinadas ao calvinismo e sua doutrina, enquanto que, invariavel­mente, na proporção em que alguém se aproxima do Equador, a doutrina tende por tornar-se cada vez mais caracteristicamente católica.

Entretanto, não precisamos continuar considerando os detalhes das diversas expressões desse moderno ponto de vista criado pelo homem. O ponto importante a observar é que o "eu", como tal, foi perdido de vista. Não mais se trata de uma entidade distinta, mas é reputado meramente como o resultado final da interação de diversos fatores e forças. De conformidade com essa teoria, o homem é, inteiramente, o resultado de suas glândulas, de seus instintos, de sua hereditariedade, do clima onde foi criado; e a sua auto-expressão significa que ele deve permitir que esses fatores sejam livremente exercidos em sua conduta. De fato, visto que ele é apenas algo composto desses fatores, restringi-los significa violentar a si mesmo. De acordo com essa lógica, é um erro falar acerca das mãos e dos pés, como se estes "fizessem tropeçar", porque a mão, o pé e o olho constituem o verdadeiro "eu".

É nesse ponto que chegamos à distinção vital. Embora nosso Senhor não tenha falado em termos de glândulas e instintos, porventura não quis Ele apresentar precisamente a mesma coisa, ao referir-se às mãos, aos pés e aos olhos, que são apenas agências externas desses outros poderes? Notemos, porém, a maneira como Jesus expõe a questão. Ele não identificou o "eu" com esses instrumentos. O "eu" é distinto deles, maior do que eles, infinitamente mais importante do que eles. Eles não constituem o próprio "eu". Tão somente são os instrumentos, os servos, que o "eu" deve controlar e usar de acordo com a sua vontade. Segundo Cristo, pois, o homem não é um mero ajuntamento de forças biológicas. Antes, é algo infinitamente maior. O homem não é uma máquina, nem um animal conduzido e governado pelo capricho. É maior do que o corpo, maior do que a tradição, do que a história e tudo o mais. Porquanto existe no homem um outro elemento que transcende a todas essas coisas. Esse elemento chama-se alma.

Contudo, não podemos deixar neste ponto a nossa crítica acerca desse falso ponto de vista sobre o próprio "eu"; fazê-lo, seria ceder em demasia a essa idéia moderna. Podemos acusar tal teoria não apenas de identificar o "eu" aos vários fatores que tendem a influenciá-lo; mas, além disso, podemos acusá-la de identificar o "eu" a apenas alguns desses fatores. Ora, quanto a essa particularidade é que se percebe o que vamos descrever como a completa desonestidade desse ponto de vista, o que também nos dá o direito de dizer que ele nada é senão uma tentativa de justificar e racionalizar o pecado. Se tal ponto de vista fosse lógico e coerente na aplicação de sua própria idéia, pelo menos poderíamos respeitá-lo intelectualmente. Porém, não é assim, porquanto ele ignora propositalmente aquilo que não se ajusta ao seu esquema nem se adapta à sua teoria.

Por exemplo, não hesita em repelir o fator deno­minado consciência, o senso de certo e errado que há no homem, afirmando que o homem não tem maior responsabilidade por este do que pelos outros fatores frisados por esses teóricos. Eles procuram eliminar a consciência como algo falso e extrínseco, que foi impingido e enxertado no homem. No entanto, sabe-se que não existe algo mais essencial e vital ao homem do que essa faculdade.

Por igual modo, há o poder do raciocínio, a capacidade que, acima de todas, nos diferencia dos animais. Um animal é apenas o conjunto de vários poderes e forças. Não raciocina acerca desses poderes. Não pode pensar sobre os mesmos, nem considerar o que fazer com eles. Mas o poder de raciocinar e de considerar objetivamente as coisas é algo peculiar ao homem. Esse poder intelectual constantemente o impele a fazer uma pausa e a considerar, a cuidar de suas outras capacidades, controlando-as e dirigindo-as.

Porém, de acordo com esse moderno conceito, a faculdade intelectual deve ser colocada de lado, e os homens devem se comportar e viver exatamente como animais. Quanto mais retornam eles ao nível dos animais, mais verdadeiramente estarão se expressando. Essa era a opinião, por exemplo, do falecido D.H. Lawrence, o qual ensinava que uma das piores calami­dades que têm afligido a raça humana é o uso da mente e da razão. Existem algumas instâncias, para sermos exatos, em que a exclusão de coisas inconvenientes a essa teoria tem sido levada ao extremo, ao ponto de quase conduzir à conclusão de que o "eu" pode ser identificado apenas à expressão do instinto sexual e à satisfação do instinto da fome.

Assim se vê que todo o moderno ponto de vista sobre o próprio "eu" e sobre a sua real natureza está lamentavelmente errado. Essa posição identifica o "eu" com certas forças elementares de sua composição, e, portanto, rouba o homem de sua maior glória — sua alma e seu espírito — aspecto no qual ele é indepen­dente de seu corpo e de suas faculdades e maior do que estes. Portanto, é um insulto feito ao homem, algo que pretende reduzi-lo ao nível das feras, ignorando tudo quanto é mais nobre, melhor e mais elevado na natureza humana. Auto-expressão! Sem dúvida! Mas, o que é o homem? Uma mera coletânea de impulsos e instintos? Não! É uma alma imortal, dotada do poder de ordenar e controlar esses impulsos e instintos, colocando-os ao seu serviço e uso, ao invés de ser escravo deles. Não apenas mãos, pés e olhos, mas "tu", ou seja, o próprio "eu", uma personalidade cheia, completa. Temos nós percebido essa liberdade, no que concerne a nós mesmos?

Também precisamos considerar como esse culto da auto-expressão é adversário dos verdadeiros e mais elevados interesses do próprio "eu". Em certo sentido, já abordamos esse problema, porque, como é claro, tendo sobre o "eu" um conceito desesperadamente incompleto, inadequado e que elimina tudo quanto há de melhor e mais soerguedor no homem, necessaria­mente isto milita contra os mais elevados interesses de nossa natureza. Mas as palavras "fazer tropeçar", que foram usadas por nosso Senhor, exigem uma conside­ração mais extensa e profunda. Naquele texto bíblico, o "eu", identificado pelo uso da segunda pessoa "tu", não somente é separado e distinto das mãos, dos pés e dos olhos, mas, na realidade, pode ser levado por eles a "tropeçar". Os vários impulsos e instintos que te­mos no íntimo, além de não constituírem o verdadeiro e único "eu", podem, na verdade, ser os maiores inimigos do "eu", sendo o motivo de seu tropeço e a causa de sua condenação. De fato, a fim de salvaguar­dar o "eu", é dito ao homem que talvez ele tenha de decepar uma de suas mãos ou arrancar um de seus olhos, lançando-o para longe de si. Aqui está algo que o moderno ponto de vista ignora inteiramente; mas o faz porque seu conceito sobre o pecado é falso, não percebendo o perigo que ameaça o próprio "eu" internamente.

O reconhecimento do pecado é, na realidade, o ponto crucial de toda a questão. Não fora o pecado, o ensinamento da auto-expressão seria adequado. Se o homem tivesse continuado perfeito como Deus o criou, então todos os impulsos e instintos estariam operando de maneira correta, servindo aos mais altos interesses do homem. Não haveria qualquer problema, e os dias da vida de um homem seriam mais ou menos iguais. Foram o pecado e os demais atos pecaminosos que introduziram a complexidade na vida humana. A Bíblia menciona a concupiscência, por exemplo, como uma característica que, por natureza, domina a todos nós, distorcendo e pervertendo atos que em si mesmos seriam perfeitamente corretos e puros. As próprias faculdades e poderes, que tiveram por desígnio ser servos do homem, tornaram-se os seus senhores. Não fora o pecado, seria legítimo para o homem permitir que seus impulsos o guiassem. Mas, por causa do pecado, nada existe que lhe seja tão perigoso quanto isso.

Tomemos, uma vez mais, as ilustrações que foram dadas por nosso Senhor, em sua declaração. Pensemos sobre a mão e sobre o pé. Quão útil instrumento é o pé humano! Quão claro é seu propósito de beneficiar ao homem! É andando que o homem sai, praticando o bem; e, no entanto, é através dos mesmos pés que ele entra em lugares de vício e de má reputação, prejudi­cando tanto a si mesmo como a outros. Outro tanto se poderia dizer acerca da mão humana. Meditemos em todo o bem que é efetuado com as mãos. Pensemos no aperto de mãos, no tapinha às costas, no copo de água fria que é oferecido. Todavia, essa mesma mão rapida­mente se transforma em um punho fechado. Pensemos na mão que espanca a outrem. Imaginemos a mão a disparar uma arma e a cometer um assassinato. A mão, em si, é perfeita. Mas, devido ao efeito do pecado sobre o homem, pode transformar-se em instrumento de destruição do próprio homem. Por igual modo, o olho humano. Que admirável instrumento é ele! É incomparavelmente melhor quanto à delicadeza, perfeição, equilíbrio e refinamento do que qualquer instrumento que tem sido inventado pelo homem. Esse é o órgão com que apreciamos as belezas naturais, observamos o sorriso no rosto de uma criancinha e vemos o olhar de um ser amado. Contudo, é exata­mente esse o órgão que nos conduz à concupiscência, e com freqüência é a causa de pecados graves, que quase sempre levam o homem à destruição. Nada há de iníquo no olho, como tal; mas, por causa do efeito do pecado e de sua influência pervertedora, o olho, que é o mais perfeito de todos os instrumentos, pode tornar-se a causa de condenação do homem.

Por semelhante modo, todas as outras forças, instintos e poderes que existem no homem por si mesmos são inofensivos, mas, como resultado do pecado, tornaram-se uma fonte de perigo. Portanto, quão trágico e quão insensato é ignorar o pecado! Que psicologia inteiramente falsa! No entanto, é precisa­mente esse princípio que está sendo defendido em nossos dias. O pecado está sendo ignorado; portanto, o conselho para darmos expressão ao próprio "eu" está eivado das mais perigosas conseqüências que podemos conceber.

Uma outra maneira pela qual podemos ilustrar a nossa contenda sobre essa perspectiva que advoga a subserviência aos impulsos, como algo prejudicial aos melhores interesses do próprio "eu", é mostrando que tal ponto de vista impõe, deliberadamente, um só padrão de julgamento; pois, conta com apenas um teste para saber se um ato é correto ou não: o teste do prazer e da satisfação.

Ora, o evangelho não visa denunciar o prazer e a satisfação; na realidade, o evangelho oferece uma alegria maior do que aquela oferecida por qualquer outra coisa. E, o evangelho não se contenta em testar as ações apenas através desse padrão único; ele deseja trazer à luz a natureza das alegrias ou dos prazeres, se ela é boa, verdadeira e bela. Preocupando-se deveras sobre os mais elevados interesses de nossa natureza, mui obviamente ele deseja evitar todos os riscos, percebendo que nunca poderemos ser cuidadosos demais nem escrupulosos em demasia, em nossos exames. É conhecido que a criança tem apenas um teste, o teste exclusivo do prazer. Mas também é conhecido que todo o pai e toda a mãe sabe que a criança gosta, com freqüência, do que lhe é mais prejudicial, podendo ser algo inteiramente falso e feio.

Os homens e as mulheres de hoje não apreciam os processos de pensamento nem o discernimento. Quais crianças, desejam fazer o que gostam e justificam as suas ações baseando-se no fato que desejam e gostam de fazê-las. Por conseguinte, aborrecem a disciplina e o ter de enfrentar as dificuldades. Fazem objeção à inconveniência de terem de enfrentar as questões da verdade, do bem, do mal e da beleza. Fazem o que querem fazer, defendendo que a auto-expressão é algo correto. Têm apenas um padrão de valores, o do prazer. Não investigam se seu procedimento é correto e seguro, se tenderá por contribuir para o desenvolvimento de todo o seu ser, especialmente daquilo que, neles, é mais elevado e melhor. Contentam-se com este único teste: "Isto traz satisfação?"

É evidente que esse método termina revertendo ao estado da infância, ou mesmo ao da selvageria! Não é tal atitude inteiramente suicida, a julgar pelo verda­deiro padrão da natureza humana? Se o leitor deseja suprimir sua consciência, assassinar sua razão e abafar todo o desejo por coisas mais elevadas e nobres, que nascem em sua pessoa, e se deseja meramente satisfazer à concupiscência e paixão pelo prazer, então apele para o culto moderno da auto-expressão. Porém, se deseja que todo o seu ser se desenvolva e encontre meios de expressar-se, então considere o teste do prazer como uma sugestão feita pelo próprio inferno e aplique o outro teste.

Não há necessidade, porém, de argumentar sobre esse ponto de vista meramente segundo o plano teórico. Apliquemos o teste prático. Leiamos a Bíblia e estudemos a história de seus personagens. Leiamos as biografias dos maiores benfeitores que o mundo já viu. Examinemo-los especialmente à luz do que temos discutido. Davi, o rei de Israel, mostrou o seu lado melhor e mais elevado, quando expressou o seu verda­deiro "eu" e aplicou o teste isolado do prazer, na questão de Bate-Seba, tendo-se tornado, dessa maneira, adúltero e homicida? Estava Agostinho expondo a expressão mais verdadeira do seu "eu", quando ainda era um filósofo imoral? ou depois, quando se tornou o santo disciplinado que, metaforicamente, cortou as mãos e os pés e arrancou os olhos da concupiscência e dos maus desejos? Meditemos sobre todos os membros do nobre exército de santos e mártires, que viveram na abnegação, disciplinaram suas próprias vidas, conti­veram e controlaram os seus impulsos e instintos e, de modo geral, obedeceram aos ensinamentos do evangelho! Comparemo-los e contrastemo-los com os sensuais libertinos e devassos da história. Qual desses dois grupos representa mais verdadeiramente o "eu", a verdadeira natureza humana?

Fazer tal pergunta já é por si um insulto. A maneira de expressar corretamente o próprio "eu" é o caminho da disciplina e da ordem, é o caminho da razão e da oração, é o caminho do ouvir a voz da consciência, encorajando cada pensamento e desejo que trazem enlevo. O mundo poderá considerar-nos uns tolos; e, do ponto de vista do mundo, certamente seremos coxos e mutilados, tendo apenas um olho, como criaturas bastante imperfeitas. Sim, como meros animais podemos parecer imperfeitos. No entanto, se­remos dignos de sermos chamados "homens". Teremos um "eu" que se expressará com dignidade e que irá crescendo com o passar dos dias. "Não só de pão viverá o homem" (Lc 4.4); nem só de prazeres, por igual modo. Para viver, é mister que o ser inteiro e a natureza do homem sejam usados e exercitados. De outro modo, ele morrerá.

O argumento contra esse moderno ensino ainda não foi completamente exposto. Tal ensino ignora, descuidadamente, o destino final do próprio "eu": isto também precisa ser mencionado. Já foi esclarecido que isto é feito através de um ponto de vista meramente terreno e humano. Mas, há algo mais alto, infinita­mente mais importante, que tal ensino também ignora. "Melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno". E novamente: "Melhor é entrares na vida com um só dos teus olhos do que, tendo dois, seres lançado no inferno de fogo". Essas são palavras proferidas por Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. No plano puramente humano, temos visto que toda essa questão da auto-expressão é extremamente degradante para o verdadeiro "eu".

Mas, além e acima disso, há o ponto de vista de Deus a nosso respeito, que é de conseqüências infinita­mente mais profundas, por estarmos em suas mãos e ser Ele o Juiz eterno. Esse é o ponto de vista divino sobre o nosso "eu", e essa questão fica abundante­mente clara na Bíblia. De fato, ensinar isto é o propósito inteiro da Bíblia. Deus conferiu ao homem uma natu­reza e um ser semelhantes aos dEle. Criou o homem segundo a sua própria imagem. Soprou sobre o homem o hálito da vida e o tornou uma alma vivente. Essa alma é o dom de Deus para nós. É o tesouro que Ele deixou ao nosso encargo e cuidado. Esse é o "eu" que pede e espera que expressemos.

No fim da vida e do tempo, Ele julgará o nosso desempenho. O padrão do juízo será a lei moral, conforme dada a Moisés, os ensinamentos dos profetas, o Sermão da Montanha e, acima de tudo, nosso conhe­cimento confiante que temos dEle e nossa aproximação à vida vivida por nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. Pois a autêntica auto-expressão foi revelada em Cristo de modo perfeito, de uma vez por todas. A questão que teremos de enfrentar, por conseguinte, é esta: O que você tem feito do seu próprio "eu"? Como é que você o tem expressado? As conseqüências são eternas — vida ou morte, o céu ou o inferno.

Portanto, antes de começarmos a falar sobre a liberdade de auto-expressão, teremos de descobrir se possuímos ou não aquele verdadeiro "eu" que Deus desejou que todos os homens tivessem. Se nos faltar este verdadeiro "eu", não podemos expressá-lo e não seremos capazes de devolvê-lo a Deus, prestando contas acerca dele, no temível Dia do Juízo. A grande e urgente indagação, pois, com que cada homem se defronta, é a seguinte: Que sucedeu ao teu "eu"? tens domínio sobre a tua alma? o verdadeiro "eu" continua existente em ti? a visão e a faculdade divinas continuam presentes em ti? a tua alma continua viva? Mas, se alguém tiver vivido somente conforme os seus instintos, desejos e impulsos, o verdadeiro "eu" dessa pessoa desde há muito está morto, segundo ela poderá descobrir facil­mente, se ao menos tentar viver a outra forma de vida e, acima de tudo, se procurar encontrar a Deus. O homem não pode reabilitar o seu verdadeiro "eu". Não pode encontrar a Deus. O homem pode perder a alma, mas não pode achá-la de volta. Pode matá-la e destruí-la, mas não pode criá-la de novo. E, se não fosse por uma única coisa, iria inevitavelmente para o fogo eterno do inferno.

Graças a Deus, entretanto, existe essa única coisa. "Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido" (Lc 19.10). Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, desceu à terra, viveu, morreu e ressuscitou, a fim de salvar. Ele suportou o castigo que merecíamos, devido ao nosso pecado, por havermos estragado e maculado a imagem de Deus em nós. E mais, Ele restaura nossa alma para nós. Ele nos confere uma nova natureza e enche-nos com um poder que nos capacita expressar esse novo e verdadeiro "eu", tal como Ele mesmo o expressou. Essa nova forma de auto-expressão é manifesta pelo homem que é filho de Deus, agradável aos olhos do Pai celeste e herdeiro da vida eterna.

O mundo reduz o homem ao nível dos irracionais, ofende ao santo Juiz e conduz à morte eterna. A Bíblia, ao contrário, exorta-nos a desistir dos prazeres transi­tórios do pecado e a encontrar em Jesus Cristo o nosso verdadeiro "eu". É com essa finalidade que pleiteia, junto a nós, que neguemos a nós mesmos, decepemos mão ou pé, arranquemos o olho, e façamos qualquer coisa que porventura seja necessária, a fim de que sejam servidos os melhores e mais elevados interesses desse verdadeiro "eu"; porquanto assevera que "melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno".

Fonte: Sincero, mas Errado - Martyn Lloyd-Jones - Editora Fiel