quinta-feira, 2 de agosto de 2012

QUE É O HOMEM?

Por Martyn Lloyd-Jones

Que é o homem? Qualquer consideração autên­tica sobre o homem e seus problemas, no mundo moderno, deveria responder a essa pergunta. Se a idéia básica sobre o que é o homem estiver errada, então, necessariamente, também estará errada a idéia a respeito dos seus problemas e do que pode ser feito em favor dele. Assim, já de início vemos que a idéia moderna e popular sobre o homem e sua natureza afasta-se radicalmente do ponto de vista bíblico e cristão, quase universalmente crido e aceito até cerca dos últimos cem anos.

A idéia moderna acerca do homem talvez poderia ser melhor descrita como o culto da auto-expressão, sendo um conceito que tem permeado e influenciado quase cada aspecto da vida. Esse conceito é responsável pelos aspectos mais essenciais e característicos da con­duta moderna. É, por exemplo, a verdadeira explicação da última e calamitosa guerra mundial. Esse culto da auto-expressão, manifestando-se sob a forma da filosofia nazista, foi um importante fator que levou a Alemanha a mergulhar o mundo naquele horror.

Trata-se de um conceito alicerçado sobre a idéia de que a pessoa tem o direito de expressar-se, mesmo que seja às custas do sofrimento alheio, e que aquilo que alguém gosta torna-se uma necessidade legítima. Essa mesma idéia se manifesta no campo dos negócios, onde o conceito de promoção de vendas se baseia prin­cipalmente sobre essa filosofia de auto-expressão. Também pode ser percebida no campo da educação, onde o conceito de disciplina e antigo programa de ensinar às crianças as três instruções básicas — leitura, escrita e aritmética — não são mais popularmente aceitos. O resultado da atual noção popular de que a finalidade da educação consiste, primordialmente, em treinar a criança a expressar-se pode ser visto por toda a parte, tanto no colapso do controle paterno como no aumento da delinqüência juvenil.

Todavia, dentro de nossos propósitos, nos ateremos àquilo que essa moderna filosofia se expressa, particularmente no campo da religião e no mundo da alma. Sob a influência desse conceito popular, neste século, tem havido profunda e radical modificação na atitude das pessoas comuns, acerca de toda a questão religiosa. Até ao surgimento do conceito da auto-expressão, os homens se contentavam em permanecer em atitude mais ou menos negativa no tocante às suas más ações. Alguns até admitiam livremente que tinham cometido pecado, e que não havia justificativa. Outros procuravam defender-se dizendo que os padrões religiosos eram por demais elevados, que suas regras eram por demais severas. Ainda outros, como uma capa para os seus pecados, destacavam exageradamente o amor de Deus e a sua prontidão em perdoar. E outros falavam sobre o pecado em termos de virilidade, apresentando-se como homens que tinham rompido certas restrições e algemas.

Mas, a despeito das inúmeras variações, a atitude central, comum a todas essas posições, era a de admitir a existência do pecado. Todas aquelas pessoas estavam, de uma maneira ou de outra, defendendo-se das suas próprias consciências, embora de maneira contrária à opinião da igreja e da Bíblia. A súmula do desejo delas era permanecerem intocadas e não-condenadas. Ainda que algumas vezes tal desejo se expressasse, conforme vimos, na forma de um ataque contra os crentes, como se neles houvesse falta de vigor, como se fossem pessoas de mentalidades fechadas. Aqueles descontentes não diziam — e nem ansiavam dizer — que os crentes estavam errados, embora desejassem que, eventual­mente, assim ficasse provado. O seu maior desejo era o de se protegerem, de uma maneira ou de outra, da acusação de estarem afastados de Deus. O pecado, de modo geral, parecia vergonhoso. E embora, vez por outra, procurassem se defender de maneira agressiva, a atitude era totalmente negativa.

A atual perspectiva, que se baseia nesse culto da auto-expressão é, por outro lado, algo inteiramente positivo. Ao invés de serem defensivos, os métodos dessa perspectiva são de caráter ofensivo. Ao invés de resistirem ao ataque da religião, esses métodos atacam a religião cristã e todos os seus seguidores. Não satisfeita em justificar os seus próprios caminhos, essa perspectiva recomenda a si mesma como a única forma digna de vida. Declara que a posição sobre o pecado, ensinada pela igreja, com base na Bíblia, que por tanto tempo vem controlando o pensamento do mundo, não somente é inexata, mas também pervertida; e que, quando a Bíblia apela ao homem para que se abstenha de certos atos, por amor à sua própria alma, ela está sendo na realidade o pior inimigo do homem.

Todas aquelas antigas palavras acerca do pecado, dizem os auto-expressionistas, são completamente tolas, pois induzem à auto-repressão, o que, segundo afian­çam, é o único pecado. O que se costumava chamar de pecado é apenas a expressão do próprio "eu", a maior e mais vital possessão que o homem tem. Não pecar, de acordo com o antigo significado do termo, seria fazer violência ao maior dom que o homem possui. Portanto, tais pessoas pedem a abolição do vocábulo "pecado" em suas mais básicas associações.

Segundo eles, o homem é uma criatura que possui vários poderes, faculdades e instintos, e o seu bem mais elevado se acha no exercício dessas faculdades. E afirmam ser uma perversão não-saudável, da parte dos crentes, a acusação de iniqüidade e desgraça para a sociedade aquelas demonstrações de auto-expressão. Insistem na retidão do que é natural e instintivo. Deploram aquilo que chamam de trágico espetáculo da humanidade, impedida de obter seu maior bem, por aderir às advertências da Bíblia, da igreja e dos santos.

Os defensores dessa doutrina não hesitam em seguir essa lógica às suas conseqüências extremas, asseverando que a pessoa por ainda acreditar no pecado, à maneira antiga, e que, por conseguinte, tenta disciplinar e controlar a sua vida, é um pervertido, um psicopata, o qual não somente peca contra si mesmo e contra seu próprio verdadeiro destino, mas também contra a humanidade de modo geral. E assim, de acordo com esse ponto de vista, os maiores pecadores na vida têm sido exatamente aqueles a quem as diversas igrejas têm canonizado como seus maiores santos.

Esse é o conceito de vida, abraçado por milhões de pessoas em todos os países, em nossa época. Também é esse o ponto de vista que atrai a outros milhões, que só são impedidos de aceitá-lo plenamente e de se entregarem a ele, não porque vejam claramente que é errôneo, mas antes; por serem restringidos por um espírito geral de temor e pelas tradições.

Podemos considerar melhor esse ponto de vista humano sobre a vida e demonstrar sua total falácia, contrastando-o com o ponto de vista divino, estabele­cido na Bíblia. Os ensinamentos de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo bradam abertamente contra o pecado. Declarou ele: "Portanto, se a tua mão ou o teu pé te faz tropeçar, corta-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno. Se um dos teus olhos te faz tropeçar, arranca-o e lança-o fora de ti; melhor é entrares na vida com um só dos teus olhos do que, tendo dois, seres lançado no inferno de fogo" (Mt 18.8,9).

Ora, nesse texto somos relembrados acerca do modo como cada aspecto imaginável da vida e dos homens é invariavelmente tratado nas Escrituras. O homem moderno vive a lisonjear-se, sugerindo a si próprio que algumas de suas idéias são inteiramente novas. Porém, uma vez mais, encontramos uma ilus­tração de um conceito que se ufana de modernidade, sendo tratado completa e exaustivamente na Bíblia.

A primeira crítica que fazemos a esse moderno culto da auto-expressão é que ele não consegue perceber a verdadeira natureza do próprio "eu". Fala muito em fornecer meios de expressão ao "eu"; no entanto, facilmente podemos mostrar que suas próprias idéias atinentes ao "eu" são falsas e violentam a verdadeira natureza humana. É óbvio que, antes da expressão, deve vir a definição; e, conforme esperamos demonstrar, a nossa objeção não é quanto à idéia da auto-expressão, mas antes, quanto ao ponto de vista inteiramente falso acerca do próprio "eu", que muitos têm aceitado atualmente. A resposta dada pelo evangelho a esse culto moderno não é uma doutrina de repressão, mas antes, é uma chamada à percepção da verdadeira natureza do "eu". Ora, o choque entre o ponto de vista bíblico e o de homens modernos se destaca claramente nas linhas acima citadas, especial­mente na ênfase de Cristo ao usar a segunda pessoa. Se um dos teus olhos te faz tropeçar... lança-o fora de ti..." Permitam-me apresentar o assunto na forma de duas declarações positivas.

O ponto de vista moderno não estabelece distinção entre o próprio "eu" e os vários fatores que tendem a influenciá-lo, ou seja, os diversos fatores usados pelo "eu", a fim de poder exprimir-se. Por outro lado, nosso Senhor traça essa distinção bem clara e definidamente, ao salientar a segunda pessoa. O fato que Cristo assim fez pode ser a verdadeira causa de toda a confusão moderna. A posição que se tornou tão popular hoje em dia tende por reputar o homem como mero agregado de vários poderes e forças que, em sua interação, produzem um certo resultado final. Por si mesmo, o homem é apenas o resultado desses poderes e forças e de seus efeitos.

E quais são essas forças? Bem, há a própria estrutura física do corpo humano e, especialmente, suas várias glândulas, notavelmente a tireóide, a pituitária e as glândulas endócrinas supra-renais, que tendem a controlar algumas das funções mais vitais. Normal­mente, essas glândulas funcionam em perfeito equilíbrio, com alguma variação para mais ou para menos; mas, há inúmeras variações possíveis; e, conforme uma ou outra tende a predominar, o próprio "eu", junto com a personalidade, varia, segundo somos informados. É bem provável que já tenhamos lido afirmativas assegurando que todas as grandes personagens da história podem ser interpretadas em termos de tais leves modificações, nas proporções relativas dessas diversas glândulas, que se achavam em seus corpos. Assevera-se que, dessa maneira, Shakespeare e Beethoven podem ser facilmente explicados. De conformidade com essa posição, pois, o homem não passa de um mecanismo biológico; e o seu próprio "eu", a sua personalidade, não passa de puro resultado da inter-relação de forças biológicas.

Há uma outra teoria, intimamente ligada a essa, que tende a pensar sobre o homem em termos daquilo que chamamos de instintos. De acordo com esse ponto de vista, o homem, ou o próprio "eu", é determinado pela interação dos diversos instintos ou pelo predomínio de qualquer um dentre os vários instintos, tais como o instinto gregário, o instinto de proteção, o instinto do medo, o instinto sexual, o instinto da fome, etc. A personalidade essencial do homem, o seu próprio "eu", é considerada apenas como o produto dessas forças.

Na análise do "eu", uma outra teoria dá grande importância às tradições, ao meio ambiente e à forma de criação. É nessa altura que aparecem todos os elementos, como raça, sangue e nacionalidade, além de todos os fatores que podem ser atribuídos ao meio social e ao ambiente da pessoa.

Também há uma outra posição, que procura explicar o próprio "eu" segundo termos mais ou menos geográficos e climáticos. Segundo esse ponto de vista, a teologia de um homem como João Calvino deve ser explicada exclusivamente em termos do fato que ele viveu na Suíça. As raças germânicas, que vivem no norte, são reputadas mais severas, mais inclinadas ao calvinismo e sua doutrina, enquanto que, invariavel­mente, na proporção em que alguém se aproxima do Equador, a doutrina tende por tornar-se cada vez mais caracteristicamente católica.

Entretanto, não precisamos continuar considerando os detalhes das diversas expressões desse moderno ponto de vista criado pelo homem. O ponto importante a observar é que o "eu", como tal, foi perdido de vista. Não mais se trata de uma entidade distinta, mas é reputado meramente como o resultado final da interação de diversos fatores e forças. De conformidade com essa teoria, o homem é, inteiramente, o resultado de suas glândulas, de seus instintos, de sua hereditariedade, do clima onde foi criado; e a sua auto-expressão significa que ele deve permitir que esses fatores sejam livremente exercidos em sua conduta. De fato, visto que ele é apenas algo composto desses fatores, restringi-los significa violentar a si mesmo. De acordo com essa lógica, é um erro falar acerca das mãos e dos pés, como se estes "fizessem tropeçar", porque a mão, o pé e o olho constituem o verdadeiro "eu".

É nesse ponto que chegamos à distinção vital. Embora nosso Senhor não tenha falado em termos de glândulas e instintos, porventura não quis Ele apresentar precisamente a mesma coisa, ao referir-se às mãos, aos pés e aos olhos, que são apenas agências externas desses outros poderes? Notemos, porém, a maneira como Jesus expõe a questão. Ele não identificou o "eu" com esses instrumentos. O "eu" é distinto deles, maior do que eles, infinitamente mais importante do que eles. Eles não constituem o próprio "eu". Tão somente são os instrumentos, os servos, que o "eu" deve controlar e usar de acordo com a sua vontade. Segundo Cristo, pois, o homem não é um mero ajuntamento de forças biológicas. Antes, é algo infinitamente maior. O homem não é uma máquina, nem um animal conduzido e governado pelo capricho. É maior do que o corpo, maior do que a tradição, do que a história e tudo o mais. Porquanto existe no homem um outro elemento que transcende a todas essas coisas. Esse elemento chama-se alma.

Contudo, não podemos deixar neste ponto a nossa crítica acerca desse falso ponto de vista sobre o próprio "eu"; fazê-lo, seria ceder em demasia a essa idéia moderna. Podemos acusar tal teoria não apenas de identificar o "eu" aos vários fatores que tendem a influenciá-lo; mas, além disso, podemos acusá-la de identificar o "eu" a apenas alguns desses fatores. Ora, quanto a essa particularidade é que se percebe o que vamos descrever como a completa desonestidade desse ponto de vista, o que também nos dá o direito de dizer que ele nada é senão uma tentativa de justificar e racionalizar o pecado. Se tal ponto de vista fosse lógico e coerente na aplicação de sua própria idéia, pelo menos poderíamos respeitá-lo intelectualmente. Porém, não é assim, porquanto ele ignora propositalmente aquilo que não se ajusta ao seu esquema nem se adapta à sua teoria.

Por exemplo, não hesita em repelir o fator deno­minado consciência, o senso de certo e errado que há no homem, afirmando que o homem não tem maior responsabilidade por este do que pelos outros fatores frisados por esses teóricos. Eles procuram eliminar a consciência como algo falso e extrínseco, que foi impingido e enxertado no homem. No entanto, sabe-se que não existe algo mais essencial e vital ao homem do que essa faculdade.

Por igual modo, há o poder do raciocínio, a capacidade que, acima de todas, nos diferencia dos animais. Um animal é apenas o conjunto de vários poderes e forças. Não raciocina acerca desses poderes. Não pode pensar sobre os mesmos, nem considerar o que fazer com eles. Mas o poder de raciocinar e de considerar objetivamente as coisas é algo peculiar ao homem. Esse poder intelectual constantemente o impele a fazer uma pausa e a considerar, a cuidar de suas outras capacidades, controlando-as e dirigindo-as.

Porém, de acordo com esse moderno conceito, a faculdade intelectual deve ser colocada de lado, e os homens devem se comportar e viver exatamente como animais. Quanto mais retornam eles ao nível dos animais, mais verdadeiramente estarão se expressando. Essa era a opinião, por exemplo, do falecido D.H. Lawrence, o qual ensinava que uma das piores calami­dades que têm afligido a raça humana é o uso da mente e da razão. Existem algumas instâncias, para sermos exatos, em que a exclusão de coisas inconvenientes a essa teoria tem sido levada ao extremo, ao ponto de quase conduzir à conclusão de que o "eu" pode ser identificado apenas à expressão do instinto sexual e à satisfação do instinto da fome.

Assim se vê que todo o moderno ponto de vista sobre o próprio "eu" e sobre a sua real natureza está lamentavelmente errado. Essa posição identifica o "eu" com certas forças elementares de sua composição, e, portanto, rouba o homem de sua maior glória — sua alma e seu espírito — aspecto no qual ele é indepen­dente de seu corpo e de suas faculdades e maior do que estes. Portanto, é um insulto feito ao homem, algo que pretende reduzi-lo ao nível das feras, ignorando tudo quanto é mais nobre, melhor e mais elevado na natureza humana. Auto-expressão! Sem dúvida! Mas, o que é o homem? Uma mera coletânea de impulsos e instintos? Não! É uma alma imortal, dotada do poder de ordenar e controlar esses impulsos e instintos, colocando-os ao seu serviço e uso, ao invés de ser escravo deles. Não apenas mãos, pés e olhos, mas "tu", ou seja, o próprio "eu", uma personalidade cheia, completa. Temos nós percebido essa liberdade, no que concerne a nós mesmos?

Também precisamos considerar como esse culto da auto-expressão é adversário dos verdadeiros e mais elevados interesses do próprio "eu". Em certo sentido, já abordamos esse problema, porque, como é claro, tendo sobre o "eu" um conceito desesperadamente incompleto, inadequado e que elimina tudo quanto há de melhor e mais soerguedor no homem, necessaria­mente isto milita contra os mais elevados interesses de nossa natureza. Mas as palavras "fazer tropeçar", que foram usadas por nosso Senhor, exigem uma conside­ração mais extensa e profunda. Naquele texto bíblico, o "eu", identificado pelo uso da segunda pessoa "tu", não somente é separado e distinto das mãos, dos pés e dos olhos, mas, na realidade, pode ser levado por eles a "tropeçar". Os vários impulsos e instintos que te­mos no íntimo, além de não constituírem o verdadeiro e único "eu", podem, na verdade, ser os maiores inimigos do "eu", sendo o motivo de seu tropeço e a causa de sua condenação. De fato, a fim de salvaguar­dar o "eu", é dito ao homem que talvez ele tenha de decepar uma de suas mãos ou arrancar um de seus olhos, lançando-o para longe de si. Aqui está algo que o moderno ponto de vista ignora inteiramente; mas o faz porque seu conceito sobre o pecado é falso, não percebendo o perigo que ameaça o próprio "eu" internamente.

O reconhecimento do pecado é, na realidade, o ponto crucial de toda a questão. Não fora o pecado, o ensinamento da auto-expressão seria adequado. Se o homem tivesse continuado perfeito como Deus o criou, então todos os impulsos e instintos estariam operando de maneira correta, servindo aos mais altos interesses do homem. Não haveria qualquer problema, e os dias da vida de um homem seriam mais ou menos iguais. Foram o pecado e os demais atos pecaminosos que introduziram a complexidade na vida humana. A Bíblia menciona a concupiscência, por exemplo, como uma característica que, por natureza, domina a todos nós, distorcendo e pervertendo atos que em si mesmos seriam perfeitamente corretos e puros. As próprias faculdades e poderes, que tiveram por desígnio ser servos do homem, tornaram-se os seus senhores. Não fora o pecado, seria legítimo para o homem permitir que seus impulsos o guiassem. Mas, por causa do pecado, nada existe que lhe seja tão perigoso quanto isso.

Tomemos, uma vez mais, as ilustrações que foram dadas por nosso Senhor, em sua declaração. Pensemos sobre a mão e sobre o pé. Quão útil instrumento é o pé humano! Quão claro é seu propósito de beneficiar ao homem! É andando que o homem sai, praticando o bem; e, no entanto, é através dos mesmos pés que ele entra em lugares de vício e de má reputação, prejudi­cando tanto a si mesmo como a outros. Outro tanto se poderia dizer acerca da mão humana. Meditemos em todo o bem que é efetuado com as mãos. Pensemos no aperto de mãos, no tapinha às costas, no copo de água fria que é oferecido. Todavia, essa mesma mão rapida­mente se transforma em um punho fechado. Pensemos na mão que espanca a outrem. Imaginemos a mão a disparar uma arma e a cometer um assassinato. A mão, em si, é perfeita. Mas, devido ao efeito do pecado sobre o homem, pode transformar-se em instrumento de destruição do próprio homem. Por igual modo, o olho humano. Que admirável instrumento é ele! É incomparavelmente melhor quanto à delicadeza, perfeição, equilíbrio e refinamento do que qualquer instrumento que tem sido inventado pelo homem. Esse é o órgão com que apreciamos as belezas naturais, observamos o sorriso no rosto de uma criancinha e vemos o olhar de um ser amado. Contudo, é exata­mente esse o órgão que nos conduz à concupiscência, e com freqüência é a causa de pecados graves, que quase sempre levam o homem à destruição. Nada há de iníquo no olho, como tal; mas, por causa do efeito do pecado e de sua influência pervertedora, o olho, que é o mais perfeito de todos os instrumentos, pode tornar-se a causa de condenação do homem.

Por semelhante modo, todas as outras forças, instintos e poderes que existem no homem por si mesmos são inofensivos, mas, como resultado do pecado, tornaram-se uma fonte de perigo. Portanto, quão trágico e quão insensato é ignorar o pecado! Que psicologia inteiramente falsa! No entanto, é precisa­mente esse princípio que está sendo defendido em nossos dias. O pecado está sendo ignorado; portanto, o conselho para darmos expressão ao próprio "eu" está eivado das mais perigosas conseqüências que podemos conceber.

Uma outra maneira pela qual podemos ilustrar a nossa contenda sobre essa perspectiva que advoga a subserviência aos impulsos, como algo prejudicial aos melhores interesses do próprio "eu", é mostrando que tal ponto de vista impõe, deliberadamente, um só padrão de julgamento; pois, conta com apenas um teste para saber se um ato é correto ou não: o teste do prazer e da satisfação.

Ora, o evangelho não visa denunciar o prazer e a satisfação; na realidade, o evangelho oferece uma alegria maior do que aquela oferecida por qualquer outra coisa. E, o evangelho não se contenta em testar as ações apenas através desse padrão único; ele deseja trazer à luz a natureza das alegrias ou dos prazeres, se ela é boa, verdadeira e bela. Preocupando-se deveras sobre os mais elevados interesses de nossa natureza, mui obviamente ele deseja evitar todos os riscos, percebendo que nunca poderemos ser cuidadosos demais nem escrupulosos em demasia, em nossos exames. É conhecido que a criança tem apenas um teste, o teste exclusivo do prazer. Mas também é conhecido que todo o pai e toda a mãe sabe que a criança gosta, com freqüência, do que lhe é mais prejudicial, podendo ser algo inteiramente falso e feio.

Os homens e as mulheres de hoje não apreciam os processos de pensamento nem o discernimento. Quais crianças, desejam fazer o que gostam e justificam as suas ações baseando-se no fato que desejam e gostam de fazê-las. Por conseguinte, aborrecem a disciplina e o ter de enfrentar as dificuldades. Fazem objeção à inconveniência de terem de enfrentar as questões da verdade, do bem, do mal e da beleza. Fazem o que querem fazer, defendendo que a auto-expressão é algo correto. Têm apenas um padrão de valores, o do prazer. Não investigam se seu procedimento é correto e seguro, se tenderá por contribuir para o desenvolvimento de todo o seu ser, especialmente daquilo que, neles, é mais elevado e melhor. Contentam-se com este único teste: "Isto traz satisfação?"

É evidente que esse método termina revertendo ao estado da infância, ou mesmo ao da selvageria! Não é tal atitude inteiramente suicida, a julgar pelo verda­deiro padrão da natureza humana? Se o leitor deseja suprimir sua consciência, assassinar sua razão e abafar todo o desejo por coisas mais elevadas e nobres, que nascem em sua pessoa, e se deseja meramente satisfazer à concupiscência e paixão pelo prazer, então apele para o culto moderno da auto-expressão. Porém, se deseja que todo o seu ser se desenvolva e encontre meios de expressar-se, então considere o teste do prazer como uma sugestão feita pelo próprio inferno e aplique o outro teste.

Não há necessidade, porém, de argumentar sobre esse ponto de vista meramente segundo o plano teórico. Apliquemos o teste prático. Leiamos a Bíblia e estudemos a história de seus personagens. Leiamos as biografias dos maiores benfeitores que o mundo já viu. Examinemo-los especialmente à luz do que temos discutido. Davi, o rei de Israel, mostrou o seu lado melhor e mais elevado, quando expressou o seu verda­deiro "eu" e aplicou o teste isolado do prazer, na questão de Bate-Seba, tendo-se tornado, dessa maneira, adúltero e homicida? Estava Agostinho expondo a expressão mais verdadeira do seu "eu", quando ainda era um filósofo imoral? ou depois, quando se tornou o santo disciplinado que, metaforicamente, cortou as mãos e os pés e arrancou os olhos da concupiscência e dos maus desejos? Meditemos sobre todos os membros do nobre exército de santos e mártires, que viveram na abnegação, disciplinaram suas próprias vidas, conti­veram e controlaram os seus impulsos e instintos e, de modo geral, obedeceram aos ensinamentos do evangelho! Comparemo-los e contrastemo-los com os sensuais libertinos e devassos da história. Qual desses dois grupos representa mais verdadeiramente o "eu", a verdadeira natureza humana?

Fazer tal pergunta já é por si um insulto. A maneira de expressar corretamente o próprio "eu" é o caminho da disciplina e da ordem, é o caminho da razão e da oração, é o caminho do ouvir a voz da consciência, encorajando cada pensamento e desejo que trazem enlevo. O mundo poderá considerar-nos uns tolos; e, do ponto de vista do mundo, certamente seremos coxos e mutilados, tendo apenas um olho, como criaturas bastante imperfeitas. Sim, como meros animais podemos parecer imperfeitos. No entanto, se­remos dignos de sermos chamados "homens". Teremos um "eu" que se expressará com dignidade e que irá crescendo com o passar dos dias. "Não só de pão viverá o homem" (Lc 4.4); nem só de prazeres, por igual modo. Para viver, é mister que o ser inteiro e a natureza do homem sejam usados e exercitados. De outro modo, ele morrerá.

O argumento contra esse moderno ensino ainda não foi completamente exposto. Tal ensino ignora, descuidadamente, o destino final do próprio "eu": isto também precisa ser mencionado. Já foi esclarecido que isto é feito através de um ponto de vista meramente terreno e humano. Mas, há algo mais alto, infinita­mente mais importante, que tal ensino também ignora. "Melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno". E novamente: "Melhor é entrares na vida com um só dos teus olhos do que, tendo dois, seres lançado no inferno de fogo". Essas são palavras proferidas por Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. No plano puramente humano, temos visto que toda essa questão da auto-expressão é extremamente degradante para o verdadeiro "eu".

Mas, além e acima disso, há o ponto de vista de Deus a nosso respeito, que é de conseqüências infinita­mente mais profundas, por estarmos em suas mãos e ser Ele o Juiz eterno. Esse é o ponto de vista divino sobre o nosso "eu", e essa questão fica abundante­mente clara na Bíblia. De fato, ensinar isto é o propósito inteiro da Bíblia. Deus conferiu ao homem uma natu­reza e um ser semelhantes aos dEle. Criou o homem segundo a sua própria imagem. Soprou sobre o homem o hálito da vida e o tornou uma alma vivente. Essa alma é o dom de Deus para nós. É o tesouro que Ele deixou ao nosso encargo e cuidado. Esse é o "eu" que pede e espera que expressemos.

No fim da vida e do tempo, Ele julgará o nosso desempenho. O padrão do juízo será a lei moral, conforme dada a Moisés, os ensinamentos dos profetas, o Sermão da Montanha e, acima de tudo, nosso conhe­cimento confiante que temos dEle e nossa aproximação à vida vivida por nosso Senhor e Salvador, Jesus Cristo. Pois a autêntica auto-expressão foi revelada em Cristo de modo perfeito, de uma vez por todas. A questão que teremos de enfrentar, por conseguinte, é esta: O que você tem feito do seu próprio "eu"? Como é que você o tem expressado? As conseqüências são eternas — vida ou morte, o céu ou o inferno.

Portanto, antes de começarmos a falar sobre a liberdade de auto-expressão, teremos de descobrir se possuímos ou não aquele verdadeiro "eu" que Deus desejou que todos os homens tivessem. Se nos faltar este verdadeiro "eu", não podemos expressá-lo e não seremos capazes de devolvê-lo a Deus, prestando contas acerca dele, no temível Dia do Juízo. A grande e urgente indagação, pois, com que cada homem se defronta, é a seguinte: Que sucedeu ao teu "eu"? tens domínio sobre a tua alma? o verdadeiro "eu" continua existente em ti? a visão e a faculdade divinas continuam presentes em ti? a tua alma continua viva? Mas, se alguém tiver vivido somente conforme os seus instintos, desejos e impulsos, o verdadeiro "eu" dessa pessoa desde há muito está morto, segundo ela poderá descobrir facil­mente, se ao menos tentar viver a outra forma de vida e, acima de tudo, se procurar encontrar a Deus. O homem não pode reabilitar o seu verdadeiro "eu". Não pode encontrar a Deus. O homem pode perder a alma, mas não pode achá-la de volta. Pode matá-la e destruí-la, mas não pode criá-la de novo. E, se não fosse por uma única coisa, iria inevitavelmente para o fogo eterno do inferno.

Graças a Deus, entretanto, existe essa única coisa. "Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o perdido" (Lc 19.10). Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, desceu à terra, viveu, morreu e ressuscitou, a fim de salvar. Ele suportou o castigo que merecíamos, devido ao nosso pecado, por havermos estragado e maculado a imagem de Deus em nós. E mais, Ele restaura nossa alma para nós. Ele nos confere uma nova natureza e enche-nos com um poder que nos capacita expressar esse novo e verdadeiro "eu", tal como Ele mesmo o expressou. Essa nova forma de auto-expressão é manifesta pelo homem que é filho de Deus, agradável aos olhos do Pai celeste e herdeiro da vida eterna.

O mundo reduz o homem ao nível dos irracionais, ofende ao santo Juiz e conduz à morte eterna. A Bíblia, ao contrário, exorta-nos a desistir dos prazeres transi­tórios do pecado e a encontrar em Jesus Cristo o nosso verdadeiro "eu". É com essa finalidade que pleiteia, junto a nós, que neguemos a nós mesmos, decepemos mão ou pé, arranquemos o olho, e façamos qualquer coisa que porventura seja necessária, a fim de que sejam servidos os melhores e mais elevados interesses desse verdadeiro "eu"; porquanto assevera que "melhor é entrares na vida manco ou aleijado do que, tendo duas mãos ou dois pés, seres lançado no fogo eterno".

Fonte: Sincero, mas Errado - Martyn Lloyd-Jones - Editora Fiel


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