sexta-feira, 29 de junho de 2012

O SIGNIFICADO DO DISCIPULADO


Por Vincent Cheung

Há  numerosas  passagens  na  Bíblia  que  são  importantes  para  desenvolver  um entendimento  apropriado do  discipulado  cristão  e,  assim, pode parecer  enganoso  intitular  o presente ensaio O Significado do Discipulado, quando somente algumas passagens tais, e uma em  particular,  receberão  nossa  atenção.  Não  obstante,  para  transmitir  o  intento  desta  peça escrita, mas, ao mesmo tempo, evitar qualificações inconvenientes dentro do próprio título, deixaremos  esse  como  está  e  prosseguiremos  para  ver  o  que  podemos  descobrir  acerca  do significado, ou pelo menos de parte dele, de ser um discípulo de Jesus Cristo. 

Adotaremos  como  nosso  texto principal  Lucas  9:57-62,  onde  está  escrito:  “Quando andavam pelo caminho, um homem lhe disse: ‘Eu te seguirei por onde quer que fores’. Jesus respondeu:  ‘As  raposas  têm  suas  tocas  e  as  aves  do  céu  têm  seus  ninhos,  mas o  Filho  do homem não tem onde repousar a cabeça’. A outro disse: ‘Siga-me’. Mas o homem respondeu: ‘Senhor,  deixa-me  ir  primeiro  sepultar  meu  pai’.  Jesus  lhe  disse:  ‘Deixe  que  os  mortos sepultem os seus próprios mortos; você, porém, vá e proclame o Reino de Deus’. Ainda outro disse: ‘Vou seguir-te, Senhor, mas deixa-me primeiro voltar e despedir-me da minha família’. Jesus respondeu: ‘Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus’”. 

Lucas registra  aqui  diálogos  entre  Jesus  e  três  candidatos  a  discípulo,  e  parece  que todos  eles  tinham  certas  falhas  em  seu  compromisso  em  seguir  a  Cristo  que,  a  menos  que tomassem cuidado com elas, fariam com que o verdadeiro discipulado se tornasse impossível. São tais falhas que gostaríamos de examinar a seguir,  a fim de podermos reconhecer falsas promessas de lealdade a Cristo tanto em nós mesmos quanto em outros.

A  primeira  pessoa  vem  a  Jesus  e  diz:  “Eu  te  seguirei  por  onde  quer  que  fores”. Naqueles dias os indivíduos tendiam a ir à busca de seus próprios professores ou mestres, e havia aqueles filósofos que tentavam “repelir possíveis discípulos com exigências enormes, com o fim de testá-los e adquirirem para si os mais dignos”.1 Visto que a Escritura diz que Jesus  “conhecia  a  todos”  e  que  “sabia  o  que  havia  no  homem”,  (João  2:24,25),  podemos esperar  que  sua  réplica  a  esse  primeiro  candidato  fosse  dirigida  ao  maior  obstáculo  que  o impedia de oferecer devoção genuína a Cristo.

Por exemplo, quando “um homem importante” se aproxima de Jesus e pergunta: “Que farei  para  herdar  a  vida  eterna?”  (Lucas  18:18),  sua  resposta  reflete  uma  capacidade  para diagnosticar a exata condição do coração de alguém: “Falta-lhe ainda uma coisa. Venda tudo o que você possui e dê o dinheiro aos pobres, e você terá um tesouro nos céus. Depois venha e siga-me”  (v.  22).  Mas  o  homem  não  consegue obedecer  a  Cristo:  “Ouvindo  isso,  ele  ficou triste, porque era muito rico” (v. 23). 

Voltando à pessoa em nossa passagem, Jesus lhe diz: “As raposas têm suas tocas e as aves do céu têm seus ninhos, mas o Filho do homem não tem onde repousar a cabeça” (Lucas 9:58).  Não  podemos  saber  precisamente  o  que  esse  indivíduo  tinha  em  mente  quando  se ofereceu para seguir a Jesus, mas parece que ele não estava preparado para adotar o estilo de vida que era imposto para alguém ser um discípulo de Jesus naquela época. Jesus lhe diz que não tem um lar próprio em suas viagens, e que deve depender da hospitalidade e do apoio de  outros. Tornar-se um seguidor de Jesus necessariamente significaria sujeitar-se a si próprio a essa difícil maneira de viver. 

Muitos professam ser discípulos de Cristo pelas razões erradas. Eles podem ter falsas expectativas com respeito a alguém que siga a Cristo, tal como alcançar uma vida de fama, bens e reconhecimento. Que alguns cristãos sejam sim bem-sucedidos de acordo com padrões mundanos somente serve para confirmar tais expectativas naqueles que se tornam cristãos por motivos errôneos. Não é que os cristãos não devam ser famosos ou prósperos, mas que não se deve ter tais coisas em mente ao responder ao chamado de Deus. 

O  homem  moderno  não  é  apenas  o  único  que  tem  ilusões  sobre o que  a  vida  cristã possa trazer. Jesus diz em João 6:26,27: “A verdade é que vocês estão me procurando, não porque viram os sinais miraculosos, mas porque comeram os pães e ficaram satisfeitos. Não trabalhem pela comida que se estraga, mas pela comida que permanece para a vida eterna, a qual o Filho do homem lhes dará. Deus, o Pai, nele colocou o seu selo de aprovação” (João 6:26,27). Aqui, Jesus percebe que a multidão o seguia não “pela comida que permanece para a vida  eterna”,  mas  porque  eles  haviam  comido  o  pão  milagrosamente  produzido  por  Jesus antes.  Entretanto,  o  verdadeiro  discipulado  é  tal  que  não  se  trabalha  “pela  comida  que  se estraga, mas pela comida que permanece para a vida eterna”. 

Conhecendo  as  falsas  expectativas  que  muitos  podem  ter  concernente  à  caminhada cristã, Jesus adverte: “Qual de vocês, se quiser construir uma torre, primeiro não se assenta e calcula  o  preço,  para  ver  se  tem  dinheiro  suficiente  para  completá-la?  Pois,  se  lançar  o alicerce e não for capaz de terminá-la, todos os que a virem rirão dele, dizendo: ‘Este homem começou a construir e não foi capaz de terminar’...  Da mesma forma, qualquer de vocês que não renunciar a tudo o que possui não pode ser meu discípulo”. Quem não “renunciar a tudo” não pode ser um verdadeiro discípulo de Cristo. 

Devemos ouvir essa frase novamente, numa época em que o apelo do púlpito para que as pessoas se tornem cristãs é proclamado como se apenas se exigisse uma decisão simples para aceitar alguma coisa, ao invés de um compromisso com uma total transformação tanto de pensamento  quanto  de  conduta.  Jesus  repetidas  vezes  deixou  claro  suas  exigências  para aqueles que o seguiriam, e é estranho como suas chocantes palavras são freqüentemente lidas com  interesse,  mas  de  um  modo  que  não  consegue  desafiar  e  convencer  a  nós.  Devemos afirmar que Jesus quer dizer o que diz, e que realmente não se pode ser seu discípulo e ao mesmo tempo violar as condições que ele apresenta: “Se alguém vem a mim e ama o seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos e irmãs, e até sua própria vida mais do que a mim, não pode ser meu discípulo. E aquele que não carrega sua cruz e não me segue não pode ser meu discípulo” (Lucas 14:26,27). 

Repetindo,  não  estamos  dizendo  que  ser  um  discípulo  de  Cristo  necessariamente acarrete pobreza ou certos tipos de sofrimento. Muitos cristãos são bem prósperos, levando vida  relativamente  confortável,  enquanto  outros  diariamente  correm  o  risco  de  martírio.  A questão é, quando você promete a Jesus: “Senhor, eu te seguirei por onde quer que fores”, sabe de fato o que está dizendo? Você está reconhecendo seu total senhorio sobre sua vida, e se dedicando a cumprir seus ensinamentos? Ou supõe que ele seja um instrumento com que você  realizará  suas  próprias  aspirações  carnais?  A  vida  de  alguns  cristãos  não  reflete dedicação total a Cristo, mas somente um desejo para justificar sua perseguição às próprias visões  de  grandeza  para  si  mesmos,  ao  produzirem  uma  versão  cristianizada  do  “sonho americano”. 

Após lidar com os primeiros candidatos a discípulo, Jesus pede a um segundo homem que  o  siga.  “Mas  o  homem  respondeu:  ‘Senhor,  deixa-me  ir  primeiro  sepultar  meu  pai” (Lucas 9:59). Em primeiro lugar, se o pai daquele homem tinha acabado de falecer, ou se a família  estava  atravessando  o período de  luto,  então  ele  não  estaria  ali  falando  com  Jesus. Entretanto,  um  ano  após  o  enterro  inicial  do  morto,  após  a  carne  do  cadáver  ter  ficado decomposta, o filho voltaria e colocaria os ossos numa caixa especial para ser enterrada outra vez numa abertura na parede do túmulo. Em outras palavras, o homem pode estar requisitando até um ano de demora antes que seguisse a Jesus. Mas, se o seu pai está ainda vivo e ele está primeiro esperando seu falecimento, então a demora solicitada seria indefinida em extensão. 

Na  mente  dos  judeus,  é  a  sagrada  obrigação  dos  filhos  comparecer  ao  enterro  dos próprios  pais  e,  por  conseguinte,  o  que  essa  pessoa  diz  parece  demonstrar  uma  nota  de piedade filial que não pode ser culpada. Entretanto, Jesus dá essa chocante resposta: “Deixe que  os mortos  sepultem  os  seus  próprios  mortos;  você,  porém,  vá  e  proclame  o  Reino  de Deus” (v. 60). A frase contém um jogo de palavras com os dois casos da palavra “mortos” tendo diferentes sentidos. 

O  primeiro  “mortos”  é  figurado.  Pode  referir-se  a  indiferença  de  alguém,  falta  de relação, ou mesmo hostilidade para com uma coisa; ou a palavra pode ser usada para indicar uma  falta  de  influência  de  algo  sobre  a  pessoa.  A  parábola  do  Filho  Pródigo  fornece  um exemplo de tal uso: “Pois este meu filho estava morto e voltou à vida; estava perdido e foi achado”  (Lucas  15:24).  Estar  “morto”  no  sentido  aqui  empregado  é  estar  “perdido” espiritualmente. O segundo caso da palavra deve ser tomado literalmente como se referindo à morte física, visto que o objeto do enterro é o fisicamente morto. 

A declaração de Jesus no versículo 60 pode, portanto, ser parafraseada assim: “Deixe que  os  espiritualmente  mortos  enterrem  os  fisicamente  mortos,  mas  você  deve  ir  e  pregar acerca do reino de Deus”. Ou, como Leon Morris escreve: “Deixe aqueles sem discernimento espiritual desempenharem as obrigações que eles sabem fazer tão bem; enterro é bem aquilo que os espiritualmente mortos podem observar. Mas o homem que tem a visão não deve negar ou retardar seu chamado celestial”.2

A exigência de Jesus de colocá-lo acima da honra de alguém pelo pai viria a ser um grande choque à mente judaica, tanto quanto o é ao moderno não-cristão. “A linguagem, não menos do que a exigência é intransigente a ponto de serem ofensivas”.3 Mas dado que isso é o  que  Jesus  requer,  tal  nível  de  comprometimento  não  deve  ser  considerado  como extraordinário ou opcional; antes, ele o exige como um pré-requisito para o discipulado a fim de que uma pessoa não ponha nada nem ninguém antes dele, nem mesmo os próprios pais.

Lucas 14:26 diz: “Se alguém vem a mim e ama o seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos,  seus  irmãos  e  irmãs,  e  até  sua  própria  vida  mais  do  que  a  mim,  não  pode  ser  meu discípulo”.  Alguém  que  recusa  por  Cristo  em  primeiro  lugar  não  é  apenas  um  discípulo inferior; ele       não pode ser seu discípulo em absoluto. Aí, muito da pregação contemporânea falha  em  não  esclarecer  isso  para  sua  audiência:  que  a  fé  genuína  não  é  uma  “decisão” superficial para aceitar a Cristo como salvador, mas um verdadeiro assentimento mental ao evangelho  como  um  todo,  reconhecendo  a  reivindicação  de  Deus  sobre  a  pessoa  inteira, advindo da anterior regeneração do coração pelo Espírito Santo. A propagação de um falso evangelho tem levado ao ingresso de numerosos falsos convertidos para dentro da igreja. A recusa de fazer um compromisso imediato e total indica uma falta de sinceridade, e expõe o fato de que ainda não se fez do seguir a Cristo a prioridade primeira na vida. 

Amiúde ouvimos dos cristãos professos que gostariam de protelar o oferecimento de seus  serviços  a  Deus.  Há  algumas  desculpas óbvias,  tais  como,  que  primeiro  eles  desejam desfrutar  de  tudo  que  o  mundo  tem  a  oferecer,  ainda  que  a  Bíblia  diga  que  a  satisfação derivada  dos  pecados  seja  apenas “prazeres  transitórios”  (Hebreus  11:25,  ARA).  Por  outro lado, há aqueles que inventam o que parecem ser razões “nobres” para não levarem sua fé com  sinceridade  de  imediato.  Alguns  deles  podem  dizer  que  conseguem  servir  melhor  ao reino  de  Deus  devotando  suas  energias  para  a  geração  de  riquezas,  pelas  quais  eles  então contribuem para com a difusão do evangelho. Outros dão desculpas similares. 

Eles  argumentam que o  efeito  em  longo  prazo de  seus  planos  justificará  a  presente condição espiritual deles. Disparate! Vamos acreditar que os fins justificam os meios, tais que nós  —  não,  Cristo  mesmo  —  devamos  tratar  com  leviandade  a  atual  negligência  deles  na oração, suas doutrinas heréticas, suas práticas moralmente repreensíveis nos negócios e outras tais? Se Cristo sequer permite que o enterro do próprio pai se torne uma razão legítima para a demora temporária em segui-lo, todas as outras razões propostas são desculpas inaceitáveis.
Eles  não  desejam  renunciar  a  Cristo  abertamente,  mas  ainda  se  recusam  a  segui-lo  no presente. Dizer que o protelar de alguém em servir a Deus definitivamente resultará em maior serviço a ele é apenas uma tentativa de dar uma face atraente à desobediência explícita contra Deus. 

Alguns podem,  todavia,  tentar  justificar  a  si  mesmos  alegando  que  estão servindo  a Cristo “do seu próprio jeito”. Porém, uma vez mais, estão somente pondo um rótulo espiritual na obra que eles gostariam de fazer em primeiro  lugar, contribua ela à causa cristã ou não. Mas, pela nossa passagem, entendemos que o “serviço no reino de Deus” (v. 62) é equivalente a “proclamar o reino de Deus” (v. 60). 

Não é querer dizer que todos devam entrar no ministério de tempo integral — dado o deplorável nível de espiritualidade e de compreensão teológica dos cristãos da atualidade, é melhor que a maioria deles continue de fora, permanecendo onde estão. Em todo caso, pode-se ser um fiel discípulo de Cristo como trabalhador da construção civil, profissional da área médica  ou ministro  cristão.  Contudo,  a questão  é que  aqueles  que  alegam  estar  servindo  a Cristo  “de  sua  própria  maneira”,  quando  oposta  à  maneira  explicitamente  prescrita  pela Bíblia, estão apenas seguindo suas agendas pessoais em nome de Cristo. Tal coisa pode tomar diferentes formas, de empreendimentos de negócios a projetos humanitários. 

Devemos  perguntar  a  nós  mesmos:  nossos  planos  e  metas  estão  honestamente consistentes  com  a  causa  de Cristo?  Realmente  temos  interesses  do  reino  de  curto  e  longo prazos em mente? Ou estamos simplesmente aliviando nossa consciência descrevendo nossas ambições  egoísticas  em  vernáculo  cristão?  Quem  não  está  ativamente  trabalhando  sua espiritualidade pessoal e contribuindo de alguma forma para o avanço do reino de Deus agora mesmo não é um discípulo de Cristo. 

O  ensinamento  bíblico  faz  com  que  fiquem  inaceitáveis  todas  as  razões  propostas quanto  ao porquê  alguém  deve  protelar  em  dar  à  própria  fé  o  primeiro  lugar  na  escala  de prioridades.  A  maioria  das  desculpas  que  ouvimos  hoje  nem  mesmo  remotamente  soa  tão  nobre quanto àquela dada pelo segundo candidato a discípulo. A escusa “deixe Jesus esperar até que eu fique rico e famoso” não ficará de pé debaixo do julgamento divino, mesmo se alguém planeja dar a maioria dos lucros a  ele — “Ele não é servido por mãos de homens, como  se  necessitasse  de  algo”  (Atos  17:25).  A  única  maneira  aceitável  de  servir  a  Deus  é aquela por ele prescrita. Em outras palavras, dê-lhe o que ele exige, não o que você acha que ele deva exigir. Aqueles que imaginam que Cristo permite qualquer flexibilidade nessa área simplesmente não são, nem podem ser, seus discípulos. 

Vamos agora ao diálogo entre Jesus e o terceiro candidato: “Ainda outro disse: ‘Vou seguir-te,  Senhor,  mas  deixa-me  primeiro  voltar  e  despedir-me  da  minha  família’.  Jesus respondeu: ‘Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus’” (Lucas 9:61,62). Muitos comentaristas percebem nessa passagem uma alusão ao chamado de Eliseu  (1Reis  19:19-21)  mas,  ao  passo  que  foi  permitido  a  ele  por  Elias  dar  adeus  à  sua família e aos seus amigos, Jesus não permite nem mesmo isso. 

Essa pessoa dá o que, mais uma vez, parece ser uma razão aceitável, da perspectiva do não-cristão, para adiar o compromisso pleno com Jesus. Contudo, damo-nos conta agora de que nada que ponha  um “mas  primeiro”  antes  do  chamado  do  Senhor  é  aceitável.  Quando Deus chama um homem, não há nada que venha antes da obediência a tal chamado. Não deve haver nenhum “mas primeiro”, não importa o que isso possa ser, visto que a ordem divina é primeira.

Jesus responde ao homem dizendo: “Ninguém que põe a mão no arado e olha para trás é apto para o Reino de Deus”. O típico arado de mão era feito de madeira, de peso leve e, freqüentemente, tinha uma ponta de ferro. Seu uso apropriado requer ininterrupta atenção do lavrador, guiando o instrumento com sua mão esquerda, e aguilhoando os bois com a direita. Desviar  o  olhar  imediatamente  resultaria  num  sulco  torto.  A  afirmação  de  Jesus  também contém  uma  referência  à  mulher  de  Ló:  “Lembrem-se  da  mulher  de  Ló!     Quem  tentar conservar a sua vida a perderá, e quem perder a sua vida a preservará” (Lucas 17:32,33). 

A  metáfora  é  uma  figura  do  que  acontece  na  alma  de  uma  pessoa.  O  caso  é  o  de alguém que hesita em deixar para trás sua vida anterior para buscar a Cristo. Escreve Paulo: “Mais  do  que  isso,  considero  tudo  como  perda,  comparado  com  a  suprema  grandeza  do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por quem perdi todas as coisas. Eu as considero como  esterco  para  poder  ganhar  Cristo e  ser  encontrado  nele,  não  tendo  a  minha  própria justiça que procede da Lei, mas a que vem mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus e se baseia na fé” (Filipenses 3:8,9). 

Note que ter uma justiça “que vem mediante a fé em Cristo” não é uma meta a ser alcançada após se tornar um cristão, mas, antes de tudo, o que significa tornar-se um cristão. Devemos  abandonar  a  má  compreensão  de  que  se  é  salvo  aceitando  o  evangelho  em concordância superficial. Ser um cristão, absolutamente, é considerar “considero tudo como perda, comparado com a suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus...”.

Enganados pelo falso evangelho pregado em muitos púlpitos hoje em dia, alguns têm a idéia de que se pode tornar primeiro um cristão, e então, como acréscimo opcional, escolher se  tornar  alguém  completamente  dedicado.  Ou,  pode-se  ter  salvação  como  um  “cristão comum”, mas se tornar um “discípulo” posteriormente. A Bíblia desconhece tal cristianismo. Jesus diz: “Da mesma forma, qualquer de vocês que não renunciar a tudo o que possui não pode  ser  meu  discípulo”  (Lucas  14:33).  O  verdadeiro  assentimento  ao  evangelho  requer conformidade  a  todas  as  exigências  inerentes  à  mensagem  evangélica,  e  que  é  o reconhecimento  da  reivindicação  divina  sobre  a  pessoa  toda.  Ainda  que  não  se  espere  a perfeição sem pecado, uma radical (pela raiz) mudança de direção ocorre na mente na hora da conversão, ou então não ocorreu conversão em hipótese alguma. 

Grandemente preocupado com o grande número de falsos convertidos introduzidos na igreja  nos  anos  recentes  através  de  uma  mensagem  do  evangelho  distorcida,  “que,  na realidade, não é o evangelho” em absoluto (Gálatas 1:7), Ernest Reisinger escreve: “Quando aqueles que são declarados convertidos não agem como crentes, não amam o que os crentes amam, nem odeiam o que os crentes odeiam... deve-se encontrar uma outra explicação além de chamá-los a se decidirem em favor de Cristo. Isso eles já fizeram e já foram declarados “cristãos” pelo pregador ou obreiro que os evangelizou. Quando eles não agem como crentes, algo está errado. O que é? A doutrina que procurei refutar afirmar que tais pessoas são apenas “crentes carnais”; não fizeram de Cristo o “Senhor” de suas vidas... Com muita freqüência o evangelismo moderno substitui a “decisão” pelo arrependimento e pela fé salvadora... O poder do  evangelho  neo-testamentário  motivará  os  homens  a  não  descansarem  até  que  tenham evidências bíblicas de que nasceram de Deus. Ele perturbará aqueles que, sem boas razões, acreditaram  que  já  eram  crentes.  Despertará  pessoas  desviadas,  afirmando  que  existe  a possibilidade  de  que  jamais  serão  crentes  verdadeiros,  enquanto  permanecem  nessas condições...  Não  há  certeza  maior  do  que  esta:  um  coração  não-transformado  e  uma  vida mundana  levarão  os  homens  ao  inferno..  Não  é  apenas  no  mundo,  hoje  em  dia,  que  o evangelismo é necessário. Ele é necessário na própria igreja”.4

A próxima vez em que você estiver na igreja, olhe ao seu redor — em alguns lugares, a  maioria  das  pessoas  será  de  falsos  crentes,  que  nunca  foram  regenerados por  Deus.  Não importa se pareçam ser fervorosos na oração, atentos ao sermão, ou que durmam durante o culto. Se nunca houve uma radical transformação dentro de sua alma, então ela está destinada ao inferno. O melhor ainda é: “Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si
mesmos.  Não  percebem  que  Cristo  Jesus  está  em  vocês?  A  não  ser  que  tenham  sido reprovados!” (2Coríntios 13:5). 

Este  não  é  o  lugar  para  uma  completa  teologia  sistemática  sobre  a  verdadeira conversão-justificação-santificação, mas por ora basta citar esta terrível citação dos lábios de Jesus:  “Nem  todo  aquele  que  me  diz:  ‘Senhor,  Senhor’,  entrará  no  Reino  dos  céus,  mas apenas aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus. Muitos me dirão naquele dia: ‘Senhor, Senhor, não profetizamos em teu nome? Em teu nome não expulsamos demônios e não realizamos muitos milagres?’ Então eu lhes direi claramente: Nunca os conheci. Afastem-se  de  mim  vocês,  que praticam  o  mal!”  (Mateus  7:21-23).  Não  é  isso  um pronunciamento horripilante?  Como  manda  o  apóstolo  Paulo:  “ponham  em  ação  a  salvação  de  vocês  com temor  e  tremor”  (Filipenses  2:12).  Mas  os  eleitos  não  precisam  ser  oprimidos  com  terror: “pois é Deus quem efetua em vocês tanto o querer quanto o realizar, de acordo com a boa vontade dele” (v.  13). Jesus é, a um só tempo, “autor e consumador da nossa fé” (Hebreus 12.2).

Voltando ao nosso texto, o teólogo alemão Dietrich Bonhoeffer observa: “O terceiro aspirante a discípulo... cai numa inconsistência desesperançada, pois ainda que esteja pronto o suficiente  para  compartilhar  a  sorte  de  Jesus,  ele  consegue  colocar  uma  barreira  entre  si mesmo  e  o  Mestre...  O  discipulado  para  ele  é  uma  possibilidade  que  somente  pode  ser realizada  quando  certas  condições  forem  cumpridas...  O  discípulo  coloca  a  si  próprio  à disposição do Mestre, porém, ao mesmo tempo, retém o direito de ditar seus próprios termos. Mas então o discipulado não é mais discipulado, mas um programa de nós mesmo disposto para que se nos seja adequado. O problema com esse discípulo é que, ao mesmo tempo em que ele expressa sua prontidão em seguir, ele cessa de querer fazê-lo de todo... Discipulado significa adesão a Jesus somente, e de imediato”.5 Aqueles que ditam as condições e o tempo para o discipulado não podem ser discípulos de Cristo. 

Jesus diz que um verdadeiro discípulo não olha para trás. Assim como o trabalho do lavrador exige que a sua atenção à tarefa não seja dividida com outra coisa, também quem “olha para trás” não está qualificado para o serviço do “Reino de Deus” (v. 62). Jesus não diz que alguém não pode se sobressair como discípulo se olhar para trás, mas que tal pessoa não pode ser seu discípulo em hipótese alguma. É hora de levarmos essa afirmação a sério. Para ser um seguidor de Cristo, não há lugar algum para hesitação, distração ou lamento. “Quão penetrante é esse teste para aqueles que professam ser cristãos!... A religião é tudo, ou nada. Aquele  que  não  está  desejoso  de  sacrificar  tudo  pela  causa  de  Deus,  não  está  realmente desejoso de sacrificar nada”.

Escreve Matthew Henry: “Se tu olhas para trás, para uma vida mundana outra vez, e suspiras por ela; se tu olhas para trás como a mulher de Ló o fez para Sodoma, que parece ser aludido aqui, não estás apropriado para o reino de Deus... Aqueles que começam com a obra de  Deus  têm  que  resolver  prosseguir  com  ela,  ou  não  farão  nada  dela.  lhar  para  trás predispõe a recuar, e recuar é para a perdição. Não estão aptos para o céu aqueles que, tendo postos suas faces em direção a ele, desviam o olhar para o derredor. Mas aquele, e somente aquele,  que  perseverar  até  o  fim,  será  salvo”.7  A  religião  deve  ser  tudo  ou  nada.  Deve permear e dominar toda parte do pensamento e da conduta; de outro modo, nossa fé não é genuína. 

Encontro pessoas que acham que as diferenças religiosas podem ser postas de lado de uma forma que não possam afetar nossas relações com os outros. Mas, se os compromissos religiosos são em definitivo, como o devem ser, então qualquer relacionamento não afetado por tais compromissos deve ser notavelmente superficial. Se uma pessoa é capaz de ter uma relação  pessoal  profunda  com  uma outra de  religião  diferente,  somente  pode  significar  que nenhuma delas está realmente devotada à sua respectiva fé. Um cristão que tem compromisso com o  Senhor  Jesus  terá  toda  porção  de  sua  vida  dominada  por  sua  fé.  Para  se  ter  um relacionamento mais do que superficial com um não-cristão, seria necessário então transigir para  a  outra  parte.  E  ter  a  mais  profunda  espécie  de  relação  com  tal  pessoa,  como  no casamento, não é permitido pela Escritura em absoluto. 

Repetindo,  somente  comprometendo  sua  fé  é  possível  a  um  cristão  professo  (digo professo, visto  que  os  cristãos  de  fato  certamente  não  comprometerão  sua  fé)  ter  uma profunda relação com um não-cristão. Isso porque, uma vez que eles foram além de um nível superficial de interação, a inimizade entre as duas cosmovisões opostas tornar-se-á por demais óbvia. Mas, se transigir não é uma opção para o crente genuíno, então, a menos que o não-cristão se converta (a única espécie de “transigência” que o cristão deve aceitar dos outros no final  das  contas),  nenhuma  comunicação  verdadeiramente  significante  é  possível.  O  não-cristão  rejeita  o  que  o  cristão  crê  acerca  das  questões mais  profundas  da  vida,  enquanto o cristão não pode aquiescer ao ponto-de-vista do não-cristão. 

É Jesus quem diz: “Não pensem que vim trazer paz à terra; não vim trazer paz, mas espada. Pois eu vim para fazer que ‘o homem fique contra seu pai, a filha contra sua mãe, a nora  contra  sua  sogra;  os  inimigos  do  homem  serão  os  da  sua  própria  família’”  (Mateus 10:34-36).           Haverá      conflitos  entre  cristãos  e  não-cristãos.  Os  genuínos  compromissos religiosos não são algo que possam ser postos de lado. De outro modo, por que os incrédulos que  afirmam  desejar  comunhão  conosco  recusam-se  a  converter  ao  cristianismo?  Assim, contrariamente ao que dizem, eles reconhecem que importam sim os compromissos religiosos, e  que  o  que  alguém  crê  acerca  das  questões  últimas  é  mais  importante  até  do  que  os relacionamentos  familiares.  A  diferença  é  que  eles  são  hipócritas  acerca  disso  —  muitos incrédulos  que  dizem  que  valorizam  os  relacionamentos  gostariam  de  nos  por  à  parte  dos princípios bíblicos, enquanto se apegam às suas próprias religiões e cosmovisões.

Um  teólogo  observa  que somente  Deus  já  exigiu  dedicação  total  da  parte  dos seres humanos da maneira que Jesus o faz em nossa passagem. Justamente! E isso é o que devemos ter em mente, que, quando estamos lidando com Jesus Cristo, estamos decidindo sobre nossas vidas  em  relação  com  alguém que nada  mais  é do  que  o  próprio  Deus.  Nossa  presteza  em segui-lo, portanto, reflete nossa atitude para com Deus — pois ele é Deus. 

Muitas  pessoas  que  garantem  seguir  a  Cristo  estão  mentindo  acerca  disso  —  estão usando  sua  profissão  cristã  como  uma  capa  para  ocultar  suas  próprias  aspirações  pessoais. Continuam  a  perseguir  seus  próprios  planos  egoísticos,  só  que,  agora,  escondem  suas verdadeiras intenções descrevendo seus estilos de vida como sendo para o bem do reino. A maioria da pregação contemporânea dilui a mensagem bíblica nesse assunto, e serve apenas para alimentar o problema. O chamado de Cristo ao discipulado exige a transformação e a dedicação da pessoa como um todo. 

Com a igreja contendo tal mistura de verdadeiros e falsos discípulos, como podemos distingui-los uns dos outros? E por qual padrão devemos examinar a nós mesmos? Jesus nos dá  uma  resposta  direta  em  João  8:31:  “Se  vocês  permanecerem  firmes  na  minha  palavra, verdadeiramente  serão  meus  discípulos”.  O  discipulado  genuíno  é  caracterizado  por  ouvir, compreender e obedecer aos preceitos divinos. Quem crê e obedece à palavra de Deus será salvo por ela, mas quem a rejeita será por ela destruído. “As [sementes] que caíram em boa terra são os que, com coração bom e generoso, ouvem a palavra, a  retêm e dão fruto, com perseverança” (Lucas 8:15) — tal é o verdadeiro discípulo de Cristo, que possui uma fé que obedece e persevera.

Como mencionado no início, há vários textos bíblicos que precisaríamos estudar para o  nosso  entendimento  do  discipulado  cristão  ser  completo.  Entretanto,  nenhuma  daquelas passagens  remove  as  condições  acima  expostas;  antes,  apenas  fazem  exigências  adicionais sobre as vidas daqueles a quem Deus chama. No mínimo, então, temos que seguir a Cristo sem reservas, demora ou lamento. Devemos segui-lo aonde quer que ele nos conduza, mesmo para  lugares  e  situações  que  não  esperamos.  A  obra  do  reino  deve  ser  nossa  prioridade máxima. E não devemos olhar para trás uma vez que tenhamos nos esforçado por esse estilo de vida, como se anelando pelo que outrora tínhamos, ou pelas vidas que outros que não o seguem  tenham.  Quantos  daqueles  que  professam  a  Cristo  o  seguem  dessa  forma?  Ser discípulos  autênticos  não  pode  ser  nada  menos  do  que  isso.  Por  conseguinte,  lute  para  se  certificar de seu lugar no reino — pare de enganar a si próprio — para que seu trabalho para Cristo não venha a ser em vão. 

Fonte: PIEDADE COM CONTENTAMENTO, Vincent Cheung, Publicado originalmente por Reformation Ministries International

Tradução: Vanderson Moura da Silva



terça-feira, 26 de junho de 2012

A VONTADE DE DEUS


Por Duane Edward Spencer 

Com base nas Santas Escrituras, comecemos nossa comparação dos Cinco Pontos do Arminianismo com os Cinco Pontos do Calvinismo, estabelecendo a base bíblica a respeito da vontade e dos decretos de Deus (= Jeová), queremos dizer ela não é senão expressão do seu Ser onipotente e onisciente. Se Ele é onipotente, como o atestam as Escrituras, Ele realizará tudo o que está incluído nos seus propósitos, e, se, Ele é onisciente, não cometerá erros nos seu plano original, nem terá necessidade de alterar o seu propósito original: 

“...diz o Senhor que faz estas coisas conhecidas desde séculos”. (Atos 15:18) 

Como afirmou Benjamin Warfield, cuidadosamente: “Na infinita sabedoria do Senhor de toda a terra, cada evento se realiza com precisão no Seu próprio lugar, no desdobramento do Seu plano divino. Nada, por pequeno e estranho que seja, ocorre sem estar prescrito, ou em sua particular adequação ao seu lugar, na realização do Seu propósito; no fim de tudo, será manifestada a Sua glória e aumentado o Seu louvor. Esta é a filosofia do Universo, tanto no Velho como no Novo Testamento, uma visão do mundo que alcança unidade num absoluto decreto, ou propósito, ou plano do qual tudo o que acontece é apenas o seu desdobramento no tempo”.

Portanto, como veremos, o que quer que aconteça na história da humanidade, acontece em virtude do fato de estar de acordo com o eterno plano ou propósito de Deus. Se alguma coisa deve ocorrer contra a vontade de Deus, porque na opinião da criatura finita “é boa”, então Satanás e o homem, pelo menos ocasionalmente, devem ser iguais ou superiores ao Criador, cuja palavra sustenta que Ele é onipotente e totalmente irresistível! Por outro lado, se a vontade determinante de Deus reflete a imutável natureza do seu Ser, ela não pode nem ser obstruída nem anulada. Portanto, o que quer que venha a ocorrer em qualquer parte da criação, e em qualquer tempo da história, ocorre porque o Deus onisciente conheceu o fato, como uma possibilidade, desejou-o como uma realidade, por Sua onipotência, e estabeleceu-o no Seu plano ou propósito.
Veremos, mais adiante, que não há conflito entre as poderosas obras que manifestam sua santidade, justiça e juízo, e as gloriosas obras que revelam sua graça, amor e perdão. À luz de toda a Escritura, Deus é visto de modo perfeitamente consistente tanto quando condena uns, como quando perdoa; tanto quando revela Seu soberano juízo e justiça sobre os pecadores que não se arrependem, como quando declara Sua graça soberana, perdoando livremente àqueles que escolheu “em Cristo Jesus”, antes da fundação do mundo. Como o único Agente genuinamente livre, em toda a eternidade, que não é influenciado por nenhuma criatura ou força externa, só Ele, o Senhor da glória, pode dizer desafiantemente: 

 “Terei misericórdia de quem me aprouver ter misericórdia, e me compadecerei de quem me aprouver ter compaixão. Assim, pois, isto não depende do que quer, nem do que corre, mas de Deus, que se compadece” (Romanos 9:15-16)

Como o único Ser, no tempo e na eternidade, com absoluta liberdade de querer as coisas como Ele as vê, Deus traçou um plano que inclui tanto a eleição como a reprovação. O apóstolo Paulo diz:

“E não ela somente, mas também Rebeca ao conceber de um só, Isaque, nosso Pai. E ainda não eram os gêmeos nascidos, nem tinham praticado o bem ou o mal (para que o propósito de Deus quanto à eleição prevalecesse, não por obras, mas por Aquele que chama), já lhe fora dito a ela: O mais velho será servo do mais moço. Como está escrito: Amei Jacó, porém me aborreci de Esaú” (Romanos 9:10-13)

Em outras palavras: sem levar em conta o bem ou o malem relação aos dois homens (Jacó e Esaú), Deus fez de Jacó objeto do seu amor e Esaú, o objeto de sua ira. Por quê? Para que o seu propósito ou Plano Divino, de acordo com a eleição (ou escolha de pessoas ou eventos que realizam sua vontade0, “ficasse” firme”. O Deus das Escrituras não se desculpa pelo fato de ter determinado deixar a maioria dos homens passar a eternidade sob o seu juízo, dando-lhes exatamente aquilo que merecem, ao mesmo tempo em que, também, determinou ordenar para a salvação alguns que, igualmente, soa merecedores de juízo, porque é do seu agrado agir assim para mostrar sua natureza de graça, misericórdia e amor na presença dos anjos eleitos. Paulo pôde dizer:

“Porque Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançarmos a salvação por nosso Senhor Jesus Cristo” (I Tessalonicenses 5:9)

Cristo, na verdade, é um escândalo para os não-regenerados, e o seria também para todos os homens, se Deus não tivesse escolhido e regenerado alguns dentre eles, levando-os ao arrependimento e dotando-os de em sua Palavra. Pedro diz que o Salvador é:

“Como uma pedra de tropeço e rocha de escândalo; porque tropeçam na palavra, sendo desobedientes; para o que também foram destinados” (I Pedro 2:8)

Neste texto, Pedro usa a mesma palavra grega que significa “ordenados” ou “estabelecidos”, e que Paulo emprega quando diz que nós, ao contrário, “não fomos ordenados” a ira e a descrença. Quando o apóstolo Paulo deseja mostrar como Deus ordenou uns para a salvação, sem levar em conta quaisquer qualidades de bem que tivessem feito, e, ao contrário, quando deseja mostrar que Deus ordenou outros para a condenação, diz:

“Pois diz a Escritura a Faraó: Para isto mesmo te levantei: para em ti mostrar o meu poder, e para que seja anunciado o meu nome em toda a terra “(Romanos 9:17)

Em outras palavras, quando Deus precisou de alguém para executar o seu plano – alguém que resistisse a sua Palavra e perseguisse Israel e o matasse -, escolheu a Faraó. Dentre milhões de espermatozóides que poderiam ter fecundado o ovo preparado da mãe de Faraó, Deus determinou que um fecundasse e se tornasse rei do Egito. Esse indivíduo, em particular, perfeitamente preparado para a tarefa de levar a bom termo aqueles feitos que fizeram cumprir-se, perfeitamente, o propósito de Deus naquele admirável momento histórico. Para levar adiante o seu plano, Deus não precisou fazer Faraó agir contra a sua própria natureza. Ele apenas usou a pessoa que tinha todos os ingredientes necessários com os quais responderia positivamente ao “príncipe do poder do ar” e, ao mesmo tempo, realizaria o propósito divino estabelecido desde toda a eternidade! Isto não é senão a enunciação do principio, que diz:

“Pois até a ira homem há de louvar-te...” (Salmo 76:10)

Antes de ter lançado os fundamentos do céu e da terra, o Criador determinou que cada criatura e cada ato da história seria para sua glória e honra, e não para a glória e honra de outro. Ele determinou também que “ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda língua confesse que Jesus Cristo é o Senhor para a glória de Deus Pai” (Filipenses 2:10-11)
Além disso, aqueles que se recusam a aceitar o eterno decreto de Deus, Paulo escreve:

 “Mas, ó homem, quem és tu, que a Deus replicas? Porventura a coisa formada dirá ao que a formou: Por que me fizeste assim? Ou não tem o oleiro poder sobre o barro, para da mesma massa fazer um vaso para uso honroso e outro para uso desonroso? E que direis, se Deus, querendo mostrar a sua ira, e dar a conhecer o seu poder, suportou com muita paciência os vasos da ira, preparados para a perdição; para que também desse a conhecer as riquezas da sua glória nos vasos de misericórdia, que de antemão preparou...” (Romanos 9:20-25)

Em suma, o Divino Oleiro determinou que algumas de suas criaturas fossem preparadas ou “escolhidas” para serem vasos de desonra, cujo fim seria o castigo eterno. Outras, feitas do mesmo barro, foram predestinadas a serem vasos apropriados para dar glória ao seu nome, e ordenadas para gozar a eternidade na alegria dos céus. Oh, meu Deus! Se Paulo estivesse pregando uma tal mensagem numa boa parte de púlpitos “evangélicos” hoje, haveria uma reunião incontinenti do Conselho de Oficiais da Igreja, e o pregador seria expulso antes mesmo de eles saírem para o almoço! Não admira, pois, que a Escritura diga:

Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os meus caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como o céu é mais alto do que a terra, assim são os meus caminhos mais altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais altos do que os vossos pensamentos” (Isaías 55:8-9)

Certamente, o caminho de Deus não é o caminho “que parece certo ao homem”. Contudo, lembremo-nos, o caminho que parece muito certo à razão do homem é, na verdade, o caminho de Satanás, e o seu fim é a morte eterna, como diz Salomão:

“Há um caminho que ao homem parece direito, mas o fim dele conduz à morte” (Provérbios 14:12)

Os homens podem conluiar e podem fazer projetos seguindo o plano contrário a Satanás, o seu deus, mas não podem agir de modo contrario a vontade e o plano de Deus, que preordenou toda a história, desde os maiores aos menores eventos, mesmo os mais (aparentemente) insignificante! Quanto aos resultados (deste plano), os santos de Deus podem ”dar graças em todas as coisas”, porque sabem que o Criador estabeleceu um plano que garante que “todas as coisas” na história, operarão no seu conjunto para o bem de seus eleitos. Eles podem enfrentar os seus inimigos que procuram arruinar suas vidas, bem como podem enfrentar os eventos que os têm afligido e penalizado, e dizer como José:

“Vós, na verdade, intentastes o mal contra mim; Deus, porém, o intentou para o bem, para fazer o que se vê neste dia, isto é, conservar muita gente com vida” (Gênesis 50:20)

Como reconheceu Nabucodonozor, depois de recobrada a sua sanidade, podemos entender que:

“E todos os moradores da terra são reputados em nada; e segundo a sua vontade ele opera no exército do céu e entre os moradores da terra; não há quem lhe possa deter a mão, nem lhe dizer: Que fazes?” (Daniel 4:35)
                                                                                           
Loraine Boettner sumariou isto, dizendo: “Tudo foi infalivelmente determinado e imutavelmente fixado por Deus, desde o começo, e tudo o que acontece no tempo não é senão a realização daquilo que foi ordenado na eternidade”.

Jeová diz:

“Lembrai-vos das coisas passadas desde a Antigüidade; que eu sou Deus, e não há outro; eu sou Deus, e não há outro semelhante a mim; que anuncio o fim desde o princípio, e desde a Antigüidade as coisas que ainda não sucederam; que digo: O meu conselho subsistirá, e farei toda a minha vontade” (Isaías 46:9-10)

Quão arrasador do Eu é um tal testemunho! Como a mente carnal do homem aborrece a doutrina da graça soberana e do castigo! Como o coração do homem se rebela contra os decretos do Todo-poderoso, que governa sem que sua imutável vontade seja violada! Como o homem odeia, quando lhe dizem:

“O coração do homem propõe o seu caminho; mas o Senhor lhe dirige os passos” (Provérbios 16:9)

A mente carnal procura criar o seu próprio deus, que ama a todas as coisas, que se afina com todos os modos do mal e da loucura, e sucumbe à vontade dos homens maus, que gritam: “Desigualdade!” Os homens, pecadores que são não podem tolerar um Deus que:

“Disse, pois, ele: Vai, e dize a este povo: Ouvis, de fato, e não entendeis, e vedes, em verdade, mas não percebeis. Engorda o coração deste povo, e endurece-lhe os ouvidos, e fecha-lhe os olhos; para que ele não veja com os olhos, e ouça com os ouvidos, e entenda com o coração, e se converta, e seja sarado” (Isaías 6:9-10)

Contudo, este é precisamente o Deus que temos na Escritura, quer o vejamos através dos Profetas do Antigo Testamento, quer o vejamos nas pessoa do seu Filho amado, no Novo Testamento. Como Lutero, rudemente, coloca a questão: “Ofende grandemente a nossa natureza racional o foto de Deus, com base em sua só vontade imparcial, deixar alguns homens entregues a si mesmos, trata-los duramente e, então, condena-los! Porém, Deus demonstrou abundantemente – e continua a faze-lo – que esse é realmente o caso, isto é, que a única razão pela qual alguns são salvos e outros perecem está na sua vontade de salvar àqueles e condenar a estes”.

“Portanto, tem misericórdia de quem quer, e a quem quer endurece” (Romanos 9:18)

A Palavra de Deus é o seu poder para a salvação de todos os que crêem. Ele determina quem há de crer e quem há de não crer. Deus declara:

“Assim será a palavra que sair da minha boca: ela não voltará para mim vazia, antes fará o que me apraz, e prosperará naquilo para que a enviei” (Isaías 55:11)
     
Notemos! A vontade de Deus é realizada pela sua Palavra, naquilo para o que foi enviada. Dois homens, talvez gêmeos idênticos, estão sentados na igreja, assistindo a pregação da Palavra de Deus. Um recebe Cristo e o outro rejeita o Salvador. Por quê? Cuidado com a resposta à base da razão humana, mas responda com base na Escritura1 segunda a Bíblia, a Palavra de Deus realiza a vontade de Deus.
Assim, permanece o fato de que um homem crê, porque essa é a vontade de Deus; e o outro rejeita, porque também é essa a vontade de Deus. Não fosse a escolha divina, e a eleição de alguns para a salvação, ninguém seria capaz de crer. Só crêem aqueles “que são ordenados para a salvação”, porque a Palavra de Deus nunca retorna vazia, frustrada ou anulada. Sempre, e sem exceção, realiza o prazer do Deus soberano, porque Ele decretou que o eu plano divino prosperará em cada pormenor, como diz o Livro de Atos:

“Os gentios, ouvindo isto, alegravam-se e glorificavam a palavra do Senhor; e creram todos quantos haviam sido destinados para a vida eterna” (Atos 13:48)

Fonte: TULIP - Os Cinco Pontos Do Calvinismo



A IGREJA BRASILEIRA NA PÓS-MODERNIDADE



Por Prof. Isaías Lobão Pereira Júnior

O pensamento Pós-Moderno esvaziou a religião formal. Na Pós-Modernidade, a religião deixou a dimensão pública e restringiu-se à esfera privada. Na tentativa de se libertar de uma cultura religiosa com padrões morais absolutos, o indivíduo pós-moderno criou uma religiosidade interiorizada, subjetiva e sem culpa.

As pessoas querem optar pela sua “preferência” religiosa sem ser importunadas por opiniões contrárias. Os critérios que orientam essas escolhas são todos íntimos e subjetivos. Semelhantemente, também não tentarão impor sua nova opção de fé a ninguém.

Na Igreja, o que antes era convicção, hoje é opção. Os mandamentos divinos passaram a ser sugestões divinas. A igreja é orientada por aquilo que certo e não por aquilo que é certo. O pragmatismo missionário e o “novo poder” da igreja (político, econômico, tecnológico, etc) esvaziou o significado da oração e seu espaço na tarefa da igreja. Confiamos mais em nossos recursos e menos em Deus, superestimamos o poder de César e subestimamos o poder de Deus. As ferramentas ideológicas e tecnológicas tornaram-se mais eficientes que a comunidade e a comunhão.

Entendo que a versão evangélica da pós-modernidade seja o neopentecostalismo e seus famigerados congêneres. O neopentecostalismo possui diversos traços de continuidade cultural com o catolicismo popular latino-americano. Continuidade que muitas vezes desemboca em sincretismo e no reforço de práticas e concepções corporativistas. O protestantismo, por sua vez, é a religião da escrita, da educação cívica e racional. Favorece uma cultura política democrática e promove uma pedagogia da vontade individual.

Entende-se por “protestante” ou “protestantismo” todo o conjunto de instituições religiosas surgidas em conseqüência da Reforma Religiosa do século XVI nas suas principais vertentes que são a luterana e a calvinista e que procuram manter os princípios básicos que formam o princípio protestante da liberdade: a justificação pela fé, a “sola scriptura”, o livre exame da Bíblia e o sacerdócio universal de todos os crentes.


Hoje em dia é difícil incluir entre os protestantes alguns setores do pentecostalismo e, principalmente, do neopentecostalismo brasileiro. Esta é a opinião do Dr. Ricardo Mariano [1] que analisou os modernos movimentos neopentecostais e segundo ele:

O neopentecostalismo, o responsável pela “explosão protestante”, à medida que passa a formar sincretismos, a se autonomizar em relação à influência das matrizes religiosas norte-americanas, a promover sucessivas acomodações sociais, a abandonar práticas ascéticas e sectárias, a penetrar em novos e inusitados espaços sociais e a assumir o status de uma grande minoria religiosa, cada vez menos tende a representar uma ruptura com a cultura ambiente. Tende, pelo contrário, a mostrar-se menos distintivo, mais aculturado, mais vulnerável à antropofagia brasileira e, portanto, cada vez menos capaz de modificar a cultura que o acolheu e na qual vem se acomodando.

O neopentecostalismo, pelo contrário, provêm da cultura religiosa do catolicismo popular, corporativista e autoritário. É a religião da lábia, do engano e da corrupção. Ele favorece o analfabetismo bíblico. Esta nova religiosidade evangélica é um tipo de ocultismo, recheado de citações bíblicas. O Neopentecostalismo há muito deixou de ser evangélico, tornando uma outra forma de expressão religiosa, distante do pensamento protestante e reformado.

Uma das rupturas mais sérias do Neopentecostalismo com o pensamento protestante, é o uso da Bíblia. No Protestantismo a Bíblia é sua última autoridade, não a tradição ou personalidades importantes ou mesmo a experiência espiritual, enquanto que o Neopentecostalismo enfatiza o uso mágico da Escritura. Para os neopentecostais, a Bíblia é mais um oráculo a ser consultado do que a única regra de fé e prática.

Em Brasília, um jornal local publica semanalmente um anúncio estranho: “Revela-se por Professia” (sic). A promessa por trás dessa mensagem é a solução imediata dos problemas, dos encostos e das maldições, tal como as inúmeras videntes que infestam os grandes centros urbanos. Normalmente nestas sessões, a vidente se posta diante do pedinte com uma Bíblia aberta. A intenção é encontrar “na palavra” a solução para os problemas. Os versos bíblicos são interpretados fora de contexto, sempre na busca de uma “palavra de bênção”.

No neopentecostalismo, as doutrinas bíblicas foram rejeitadas e substituídas por um falso evangelho centralizado no homem. Boa parte da pregação neopentecostal é um mero exercício de auto-ajuda, com a intenção principal de acalmar a consciência pecaminosa com promessas de riqueza e bem-estar. Contudo, o mandamento para todos os ministros cristãos, ainda continua sendo, prega a palavra (I Timóteo 4:1), em lugar disso, os pregadores se transformaram em animadores de auditório.

Nossa tarefa apologética para esta era pós-moderna é restaurar a confiança na verdade. A Bíblia continua sendo a Palavra de Deus. A Bíblia é um documento inspirado da revelação divina, quer este ou aquele indivíduo receba ou não o seu testemunho. Devemos, pois, respeito e obediência à Bíblia, não por ser letra fixa e estática, mas porque, sob a orientação do Espírito Santo, essa letra é a Palavra viva do Deus vivo dirigida não só ao crente individual, mas à Igreja em geral.

A igreja precisa rever sua atuação, olhando para o Senhor Jesus e lançando-se humildemente de volta às Escrituras, resgatando sua identidade e o seu chamado. Se abrirmos mão da Palavra de Deus como verdade absoluta, correremos sérios riscos diante de uma sociedade sem referenciais, mas principalmente diante de um Senhor zeloso que rege a história e têm em suas mãos todo o domínio e todo o poder.

NOTAS:
[1] - MARIANO, Ricardo. O futuro não será protestante. Comunicação apresentada na USP na Jornada sobre Alternativas Religiosas na América Latina. 1998.